“O mundo nunca produziu tanto alimento quanto agora. E a fome continua lá com os 800 milhões, 700 milhões — oscila um pouquinho, sobe um pouquinho, desce um pouquinho, mas está sempre por ali, entre 700 e 800 milhões de pessoas […]. O problema da fome não é um problema de disponibilidade, é um problema de acesso”, disse o coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Renato Maluf.
“Esse é um outro caminho, diferente dessa ideia do celeiro do mundo que entope o mundo de soja e carne. Não estou dizendo que não tem que ter soja nem carne. Tem um modelo dominante que é danoso em vários aspectos, inclusive na saúde humana; é isso que precisa ser questionado.”
“Tem os dois lados da moeda. A fazenda do mundo, no sentido de ser um grande produtor de alimentos, mas remonta também a toda uma tradição de monocultura, de uma sociedade escravocrata. Então [o Brasil] está nos dois lados da moeda, como produtor de alimentos, e isso é um status que tem avançado nas últimas décadas, nos últimos anos; mas também pelo lado de combate à fome, à pobreza, à desigualdade, que são males que afligem o Brasil mais do que deveriam, dado o nosso nível de desenvolvimento”, opinou o economista.
“Acho que o caso brasileiro mostra que quando você desestrutura o combate à fome, por exemplo com o fim do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, coloca em segundo plano a questão da merenda escolar, do apoio à agricultura familiar, uma série de ações que o Brasil tomava, […] a fome cresce.”
“O enfrentamento da fome, assim como o enfrentamento da pobreza, são fenômenos que têm múltiplas dimensões, portanto exigem múltiplos instrumentos […]. Nossa sociedade não é desigual por um desígnio divino, você tem causas muito identificáveis […]. É uma desigualdade que tem origem na concentração da propriedade da terra, em questões raciais, que tem origem no solo urbano”, argumentou, frisando que o combate à fome deve ser intersetorial e com muita participação social.
“É um tipo de alimentação associada com doenças não transmissíveis, como a obesidade. Considero uma falácia dizer que há uma segurança alimentar mundial e um enfrentamento da fome no mundo que pode e deve ser feito por meio da agricultura de larga escala tecnificada, da monocultura, com produtos processados e ultraprocessados e fluxos internacionais sob controle das grandes corporações.”
“É mais complexo do que apenas pessoas sem comida para comer. Fala-se pouco da qualidade e da quantidade de alimentação que passa por hábitos culturais que estão sendo mudados a uma velocidade grande neste mundo de Internet, neste mundo de trabalho remoto”, declarou, ao defender que as pessoas também precisam ser informadas e formadas a respeito disso.
“Tem, sim, um componente político da fome muito forte, e isso já nos ensinava Josué de Castro, em sua ‘Geografia da fome’, em 1946, quando dizia que a fome não era produto de nenhum tipo de fatalidade, de nenhum tipo de característica cultural; era fruto da ação humana, fruto de modelos de desenvolvimento”, comentou ele ao citar o médico pernambucano, que foi um dos grandes nomes do país no combate à fome, também citado por Lula em seu discurso na Cúpula do G20.
Fonte: sputniknewsbrasil