Análise: aumento de efetivo militar indica que Rússia se previne para nova etapa de acirramento


O presidente russo, Vladimir Putin, afirmou nesta terça-feira (19) que o mito da invulnerabilidade do equipamento militar ocidental colapsou. A declaração foi dada em uma reunião ampliada do conselho do Ministério da Defesa russo.
Putin sublinhou que após a Segunda Guerra Mundial a União Soviética transferiu parte de territórios históricos russos para a Ucrânia, junto com parte da população russa, e investiu esforços colossais nesses territórios.
Ele advertiu que a Ucrânia atualmente vive uma ameaça de desintegração, principalmente por conta do desejo dos habitantes das regiões ocidentais de voltar à sua pátria histórica. Nesse contexto, a Rússia se torna a principal garantidora da integridade territorial da Ucrânia. Ademais, o presidente russo afirmou que Moscou está disponível para negociar com Kiev, mas o fará com base no interesse da Rússia.
Em paralelo, também nesta terça-feira, o ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, anunciou que a Rússia vai aumentar para até 1,5 milhão o número de militares, em resposta ao acordo firmado pelo Ministério da Defesa da Dinamarca com os Estados Unidos, em um formato parecido com o fechado por Washington com Finlândia e Suécia neste mês.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas em relações internacionais analisaram as declarações de Putin e Shoigu e apontaram que a chegada ao fim do conflito ucraniano ainda está distante de se tornar realidade.
Késsio Lemos, doutor em relações internacionais e pesquisador no Instituto Sul-americano de Política e Estratégia (ISAPE), lembra que Rússia e Ucrânia compartilham laços culturais, linguísticos e históricos profundos. Porém ele destaca que esses laços afrouxaram após a independência da Ucrânia.

“A integração de territórios e populações durante o período soviético, e mesmo antes, criou uma sobreposição de identidades e interesses. No entanto, a independência da Ucrânia em 1991 marcou uma clara separação política e a busca por uma identidade nacional distinta.”

Lemos argumenta que a situação atual pode ser parcialmente atribuída à decisão dos Estados Unidos de interferir na política interna da Ucrânia, tentando afastá-la da Rússia. Segundo o especialista, ao se aproximar de Kiev, Washington removeu o que seria um amortecedor entre duas potências globais, Rússia e EUA.

“Historicamente, grandes potências exercem influência sobre regiões específicas, e o espaço pós-soviético é tradicionalmente visto como a esfera de influência da Rússia. A Ucrânia, em particular, é estrategicamente vital para essa esfera, do ponto de vista geopolítico. A intervenção dos EUA na política interna da Ucrânia, buscando distanciá-la da influência russa, pode ter sido um fator desestabilizador, removendo o que poderia ser descrito como um ‘amortecedor’ entre as duas esferas de influência.”

Sobre a declaração de Shoigu relativa ao aumento no efetivo militar russo, Lemos afirma se tratar de um reflexo inevitável do aumento da presença da OTAN na fronteira da Rússia. Ele alerta que o acirramento de tensões ameaça desencadear conflitos mais amplos e graves.
“A recente expansão da OTAN praticamente dobrou as fronteiras diretas da organização com a Rússia, implicando inevitavelmente no deslocamento de tropas e na intensificação das tensões entre as partes. Embora um conflito direto permaneça improvável, o crescimento de zonas de atrito aumenta o risco de erros de cálculo, que poderiam desencadear confrontos mais amplos e graves.”

Eleições nos EUA e crise na Europa favorecem negociações de paz

Na avaliação de Lemos, dificilmente o conflito ucraniano alcançará um desfecho no curto prazo, mas alguns fatores podem favorecer as negociações de paz.

“Enquanto a guerra estiver em um estado de impasse, as condições para negociações são reduzidas. No entanto, no médio e longo prazo temos as eleições nos EUA e na Europa, que, somadas à fadiga por parte do Ocidente, podem reduzir o apoio à Ucrânia e forçar Kiev a sentar na mesa de negociação.”

De acordo com o especialista, “à medida que 2024 se aproxima, a complexidade política na União Europeia e nos EUA deve aumentar, devido às eleições em junho e em novembro, respectivamente”.
“A incerteza política nos EUA e na União Europeia representa um desafio para Kiev. Diante da possível escassez de recursos, a Ucrânia pode adotar uma abordagem militar mais defensiva em 2024, focando na proteção de seus territórios atuais em vez de tentar recuperar áreas perdidas. Isso pode resultar em um impasse prolongado no conflito, com uma diminuição na intensidade dos combates, mas sem uma resolução definitiva.”
Ele acrescenta que, a longo prazo, a situação pode permitir à Rússia fortalecer sua capacidade militar.

“Se o apoio ocidental for insuficiente, a Ucrânia pode ser forçada a iniciar conversas informais com a Rússia sobre um cessar-fogo, embora seja improvável que assine um tratado de paz formal com Moscou no curto ou médio prazo, devido à relutância em fazer concessões territoriais.”

Conflito pode caminhar para o fim por conta da exaustão

Para Isabela Gama, especialista em segurança e teoria das relações internacionais e BRICS da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), existe um componente emocional no conflito ucraniano, por conta da relação histórica com a Rússia.
“A Ucrânia tem laços emocionais com a Rússia, assim como outros diversos Estados ao redor da Rússia que fizeram parte do Império Russo”, destaca.
Ela avalia que a Ucrânia foi atraída para a órbita de influência ocidental com falsas promessas, “um pote de ouro no fim do arco-íris” que, na realidade, não existia. Segundo ela, nesse contexto, a União Europeia teve um papel mais forte que os EUA.
“Nesse conflito, especificamente, a União Europeia teve um papel ainda mais importante de mostrar aos ucranianos que eles poderiam ter uma vida melhor. Por exemplo, que em vez de viverem mais aliados à Rússia, eles poderiam se unir à União Europeia e crescer mais; eles mostraram que tinha um pote de ouro no fim do arco-íris […]. Esse potencial que não é real, do meu ponto de vista, porque existem outros Estados pequenos que se uniram à União Europeia e ainda assim não estão ganhando tanto com isso”, explica Gama.
Questionada sobre as declarações de Shoigu a respeito do aumento no efetivo militar russo, a especialista afirma que a medida é um reflexo do acirramento de tensões, que levou Moscou a tomar medidas de prevenção.
“Isso tem um papel grandioso dentro desse problema que vem se arrastando já há muitos anos, que é a OTAN adentrando um não território russo, mas adentrando uma área que faz com que a Rússia se sinta ameaçada. A Rússia, se sentindo ameaçada, vai agir de forma agressiva.”
Ela ressalta que no caso do conflito com a Ucrânia há possibilidade de encerramento por exaustão entre as partes envolvidas, e destaca que já há indícios dessa tendência.

“Os Estados Unidos estão já [exaustos do conflito], apesar de ainda estarem enviando material bélico e capital à Ucrânia, assim como outros países da União Europeia. Muitos estão já cansados desses esforços de guerra. Não só eles cansam como são extremamente custosos. Eles estão já buscando, há algum tempo, essa tentativa de mudar esse cenário, até porque, caso esse conflito continue a escalar, isso pode acabar se espraiando para além das fronteiras ucranianas.”

Fonte: sputniknewsbrasil

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