A maioria alcançada no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) nesta sexta-feira (12) em favor da ampliação do foro privilegiado, para políticos fora do exercício dos mandatos, eleva a pressão sobre a Câmara dos Deputados para tratar do tema. Em outra vertente, a decisão dará mais um argumento para a Corte refutar contestações da defesa de Jair Bolsonaro (PL) sobre a competência do STF para julgar o ex-presidente.
Na Câmara, parlamentares alinhados ao ex-mandatário querem colocar em pauta a chamada Proposta de Emenda à Constituição (PEC) do fim do foro privilegiado, uma demanda antiga da direita que foi aprovada em comissões e enviada há quase seis anos pelo Senado, restando apenas ir a plenário. O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), sinalizou que quer a votação ainda este ano, mas gera desconfiança de que não quer afrontar o STF.
O movimento para reabrir a discussão sobre a PEC 333/2017, proposta pelo então senador Álvaro Dias (Podemos-PR), é uma resposta à consolidação de uma maioria no STF em torno do voto apresentado pelo ministro Gilmar Mendes em favor da ampliação do foro privilegiado.
O sistema de foro por prerrogativa de função, popularmente conhecido como foro privilegiado, garante que várias autoridades sejam julgados diretamente pelo STF, em vez de passarem pelas instâncias judiciais inferiores. Deputados, senadores, ministros, presidente da República e vice, além de embaixadores, integrantes dos tribunais superiores e membros do Tribunal de Contas da União (TCU), entre outros, estão inseridos neste grupo de 57 mil cidadãos, um número sem paralelo no mundo.
O entendimento atual, estabelecido em 2018 pelo STF, diz que a prerrogativa de foro especial se aplica apenas a crimes cometidos no exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas. A perda ou troca do mandato implica no envio dos processos contra esta autoridade para as jurisdições inferiores, caso não estejam em fase final da instrução processual.
Agora os ministros formaram maioria para manter no STF os processos contra autoridades que perderam mandato ou trocaram de cargo, invocando o princípio da segurança jurídica para justificar a manutenção de um largo espectro de autoridades sob a jurisdição da última instância do Judiciário.
“A prerrogativa de foro para julgamento de crimes praticados no cargo e em razão das funções subsiste mesmo após o afastamento do cargo, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados depois de cessado seu exercício”, estabeleceu Gilmar Mendes em seu voto, sendo acompanhado, até agora, pelos ministros Cristiano Zanin, Flávio Dino, Alexandre de Moraes, Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli.
O voto de Barroso, que serviu para fechar a maioria de seis entre os 11 ministros na Corte nesta sexta-feira, concorda com Mendes quando este afirma que a manutenção do foro mesmo após perda do mandato contribuirá para “acabar com deslocamentos de competência que geram atrasos, ineficiências e prescrição”.
O julgamento voltou a ser interrompido nesta sexta, após um pedido do ministro André Mendonça por mais tempo para analisar o caso, e deve ser liberado para retomada em no máximo 90 dias, segundo o regimento interno do STF.
O foro privilegiado está sendo discutido pelo STF atualmente a partir de dois casos concretos. O primeiro caso parte do pedido do senador Zequinha Marinho (Podemos-PA) por uma análise da denúncia contra ele na Justiça Federal. O outro é uma demanda da ex-senadora Rose de Freitas (MDB-ES), que tenta encerrar denúncia contra ela na própria Corte.
A PEC do fim do foro privilegiado, em tramitação no Congresso, vai na direção oposta ao novo entendimento do STF, buscando restringir a prerrogativa aos chefes dos Poderes. Na última consulta realizada por Arthur Lira aos líderes da Câmara, apenas PT e MDB se posicionaram contra a necessidade de analisar esse tema.
Decisão sobre o foro privilegiado pode afetar processos contra Bolsonaro
Embora os ministros do STF tenham usado outras justificativas para manter as investigações contra Bolsonaro na Suprema Corte, a mudança no entendimento sobre o foro deve reforçar os argumentos dos ministros para manter as investigações contra o ex-presidente sob análise deles.
Desde que encerrou o mandato presidencial, Bolsonaro tem sido alvo de uma série de investigações conduzidas pelo STF. Elas incluem investigações como a de desvio de presentes destinados ao Executivo, suspeita de criação de milícias digitais e suposta participação em planos de golpe de Estado.
A defesa do ex-presidente contesta essas acusações, principalmente argumentando que, por ele não ocupar mais nenhum cargo político, a Suprema Corte não tem competência para lidar diretamente com os casos. Seus advogados defendem que os processos deveriam ser transferidos para a primeira instância judicial, onde estaria o eu chamado “juiz natural”.
No entanto, o ministro Alexandre de Moraes, relator dos inquéritos, argumenta que há conexões entre as investigações e outros processos em andamento no STF, o que justificaria a competência da Corte para julgar casos envolvendo Bolsonaro.
Tema ganhou impulso com ações do PF contra deputados da oposição
A reviravolta do STF em relação ao foro privilegiado surge em meio a uma recente série de operações de busca e apreensão realizadas pela Polícia Federal (PF) nos gabinetes da Câmara, contra deputados da oposição, como Carlos Jordy (PL-RJ) e Alexandre Ramagem (PL-RJ), que são próximos a Bolsonaro.
Essas ações foram desencadeadas a partir de inquéritos conduzidos pela Suprema Corte e foram interpretadas por líderes da direita como perseguição política. Como resultado, muitos parlamentares que antes se sentiam protegidos pelo foro especial mudaram de ideia.
Essa discussão também ganhou impulso após o deputado Chiquinho Brazão (União Brasil-RJ) ter sido preso e o seu caso ser analisado pelo STF em razão do foro privilegiado. Suspeito de ser o mandante da morte da vereadora do Rio Marielle Franco (Psol), em 2018, ele era na época vereador.
“A autorização do plenário para a continuidade da sua prisão, com só 20 votos acima do mínimo, mostra com clareza que a Câmara está incomodada com certas interferências do Judiciário”, comentou Arthur Lira nesta quinta-feira (11), durante sua participação na exposição agrícola em Londrina (PR).
Em relação à PEC do fim do foro, ele se limitou a dizer que a maioria dos deputados concorda que uma mudança legislativa deve ocorrer, mas que não há consenso sobre sua forma.
Um dos mais ardorosos defensores do fim do foro privilegiado no Congresso, o senador Eduardo Girão (Novo-CE), expressa preocupação de que o STF esteja transformando esse “benefício” em um escudo para “garantir a impunidade”.
Ele denuncia essa possível distorção como mais uma falha no sistema jurídico, incluindo o julgamento de réus sem foro no caso dos atos do 8 de Janeiro. Por isso, o parlamentar cobra da Câmara a apreciação da PEC aprovada por unanimidade no Senado, como medida para melhorar a dinâmica da Justiça e fortalecer sua confiança.
Juristas criticam STF por ampliação do foro e apontam casuísmo
A professora de direito constitucional Vera Chemim entende que o decisão de expandir o foro privilegiado após o término do mandato das autoridades representa um “retrocesso constitucional”, além de “provocar consequências políticas” no Congresso.
“Do ponto de vista jurídico, a expansão do foro privilegiado promoverá o aumento significativo da prescrição, uma vez que a Corte estará abarrotada, com a continuação ou ingresso de ações, além de gerar atrasos no julgamento de ações de controle de constitucionalidade”, disse.
Na avaliação do advogado e professor Ricardo Peake, a mudança na jurisprudência proposta por Gilmar e Mendes e já endossada pela maioria do STF provoca, ao contrário do que diz ministro Gilmar Mendes, ainda mais insegurança jurídica ao país.
“O novo entendimento sinaliza casuísmo e preocupação com aspectos políticos imediatos e não com a melhor interpretação constitucional. O foro privilegiado no Brasil já é muito hipertrofiado e deveria ser reduzido, não ampliado”, sublinhou.
O ex-deputado e ex-procurador Deltan Dallagnol (Novo-PR) também enxerga casuísmo na interpretação, pois ela concederá ao STF autoridade para investigar, processar e julgar Jair Bolsonaro sem o atual constrangimento de faltar competência jurídica para tal. Ele argumenta que o voto de Gilmar Mendes resolve todos os impasses, preparando o terreno para o futuro julgamento do ex-presidente.
Dallagnol expressa preocupação ainda com o fato de a Corte ignorar as consequências de suas mudanças na interpretação da regra do foro, as quais poderiam levar à anulação de centenas de investigações e processos contra autoridades por crimes graves, sem possibilidade de reparação.
“A regra atual sobre o foro privilegiado estabelece que presidentes, vice-presidentes, ministros e parlamentares federais só gozam desse privilégio perante o Supremo se três requisitos forem atendidos: os crimes devem ter ocorrido durante o mandato, nem antes nem depois; os crimes precisam estar diretamente relacionados ao exercício do cargo; e o foro privilegiado só é mantido enquanto durar o mandato”, ressaltou ele, em artigo para a Gazeta do Povo.
Fonte: gazetadopovo