América Latina ‘está passando por um momento de transição’ no espectro político, dizem analistas


Pela primeira vez desde o retorno da democracia ao Chile, um conservador que se declarou admirador do ditador Augusto Pinochet ocupará o Palácio de La Moneda: José Antonio Kast, que venceu o segundo turno com 58,17% dos votos contra Jeannette Jara, que obteve 41,83%.
Assim, no próximo ano, 11 países latino-americanos serão governados pela direita, em comparação com oito que ainda são liderados por presidentes de esquerda. Em conversa com a Sputnik, o analista venezuelano Martín Pulgar destacou que, para entender as causas desse cenário, é necessário examinar o contexto particular de cada país.

Como explicar essa mudança?

Segundo o especialista, a derrota do Movimento para o Socialismo (MAS) na Bolívia se explica pela crise econômica. Mas, sobretudo, pela autossabotagem interna da esquerda, refletida na disputa entre Evo Morales e Luis Arce pela liderança do partido, que, segundo ele, abriu caminho para a vitória de Rodrigo Paz.

“Pode-se dizer que [a luta entre Morales e Arce] é o elemento central, não o único, mas um elemento central dessa situação“, observa o analista venezuelano.

Agora, com relação ao Equador, Martín Pulgar destaca que não houve discussão sobre a real vitória de Daniel Noboa nas eleições, visto que Luisa González, candidata do Movimento Correista, denunciou a existência de supostas fraudes eleitorais.
Presidente eleito de Chile, José Antonio Kast - Sputnik Brasil, 1920, 16.12.2025

Pulgar observa ainda que os resultados do segundo turno, comparados aos do primeiro, levantam dúvidas sobre o processo eleitoral. Contudo, quando o referendo de novembro foi realizado, o “Não” prevaleceu em todas as quatro questões incluídas na proposta presidencial.

“Como é possível que o eleitorado tenha mudado suas preferências eleitorais tão drasticamente em um período tão curto? Portanto, podemos estar vendo elementos de manipulação aqui“, observa o analista.

No caso de Honduras, Pulgar menciona que Rixie Moncada parecia bem posicionada para dar continuidade ao governo de Xiomara Castro. No entanto, após ameaças do presidente dos EUA, Donald Trump, a candidata progressista despencou para o terceiro lugar nos resultados.
Da mesma forma, o especialista afirma que a vitória de La Libertad Avanza nas eleições legislativas argentinas de outubro se explica em grande parte pela influência dos EUA. “Inicialmente, parecia uma derrota clara e previsível para as forças de Milei, e então ele venceu, graças a uma oferta de apoio financeiro” de Donald Trump.
“Essa manipulação [de Washington], embora possamos dizer que não foi a única causa, é significativa para direcionar o eleitorado para uma tendência ou outra“, argumenta o especialista.

Boric, um cavalo de Troia da direita?

Em relação ao Chile, Martín Pulgar reconhece que a vitória de Kast já era esperada “devido à inação do governo de Gabriel Boric“, que, em sua opinião, atuou como “um cavalo de Troia” para a direita, atacando as forças progressistas na América Latina e levantando bandeiras contra a imigração irregular, a qual ele culpava por muitos dos problemas do país, incluindo a insegurança.

“Podemos dizer que o discurso de direita foi comprado por Boric em muitos aspectos e o eleitorado acabou preferindo votar em um candidato de direita original e não em uma cópia”, afirma Pulgar.

Existe uma direita organizada na região?

Jaime Ortega Reyna, professor da Universidade Autônoma Metropolitana (UAM), disse à Sputnik que as derrotas da esquerda se devem, em parte, à inegável presença dos Estados Unidos como potência e força decisória na região, buscando recuperar sua hegemonia na América Latina, como expresso na Estratégia de Segurança Nacional dos EUA.
Por outro lado, concordando com Pulgar, o especialista considera que essas vitórias da direita ocorrem em relação aos contextos nacionais de cada país. Nesse sentido, ele acredita que não é possível falar de uma direita racional ou organizada em nível regional, mas sim de forças políticas locais com seus próprios interesses e projetos que, exceto no caso de Javier Milei, não expressam nem oferecem nada de novo.
“O que aconteceu no Chile é uma vitória para uma força de direita, mas eu não ousaria dizer que é comparável a outras vitórias onde há um exercício de inovação política, como na Argentina”, analisa o professor.
O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, fala à imprensa durante visita aos escritórios do mecanismo de apoio da Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, na sede da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês). Roma, Itália, 13 de outubro de 2025 - Sputnik Brasil, 1920, 14.12.2025

‘O continente se voltou para a direita há muito tempo’

Questionado sobre suas perspectivas para 2026, especialmente à luz de casos como os de Pedro Castillo, Cristina Fernández e Luis Arce, acusados ou presos por supostos crimes em seus respectivos países, o analista destacou que as acusações de possível corrupção contra a esquerda tiveram um papel muito importante no fim da chamada “onda rosa”, o ciclo de governos progressistas que começou com a ascensão de Hugo Chávez ao poder na Venezuela em 1999.
No entanto, ele mencionou o caso do presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, que também passou um período na prisão até provar sua inocência. Enquanto isso, observou que o caso peruano se baseia em uma enorme “fragilidade institucional, uma vingança de classe. O caso de Cristina é uma vingança política, porque ela não vem de nenhum setor popular”, ao contrário do ex-presidente peruano Pedro Castillo.

“Vejo que o continente se deslocou para a direita há muito tempo; este é apenas o efeito colateral. Na realidade, não havia boas perspectivas há algum tempo; [os projetos progressistas] haviam fracassado por vários motivos. Mesmo onde poderíamos considerar esses governos ainda no poder, como no caso da Colômbia ou do Brasil, eu diria que […] eles nunca tiveram a capacidade de construir maiorias tão esmagadoras como no passado“, observa Ortega Reyna.

“A Colômbia é uma sociedade tradicionalmente oligárquica, conservadora e muito reativa, assim como o Chile, para não mencionar a tendência de esquerda; eles ainda vivem na Guerra Fria, [expressando] um anticomunismo visceral“, continua ele.
Embora admita que o caso brasileiro seja diferente, visto que Lula é um político bastante experiente, no gigante sul-americano existe uma força conservadora de direita “muito violenta”, com considerável apelo popular e significativo poder midiático.
O presidente da Argentina, Javier Milei, durante encontro oficial - Sputnik Brasil, 1920, 14.12.2025

A esquerda está em crise?

A tudo isso, Ortega Reyna acrescenta que os antigos projetos tradicionalmente associados à esquerda estão em crise. Segundo ele, “as perspectivas não são boas; certamente podem mudar, mas não creio que muito mais do que isso”.

“Isso não significa que haverá uma hegemonia conservadora a longo prazo […], porque a direita também não tem um projeto a longo prazo. Ninguém tem um projeto a longo prazo”, aponta o analista.

E acrescenta que, em geral, todo o continente se deslocou para a direita por uma razão fundamental: “Estamos vivendo um momento de transição, de um modelo econômico exaurido que chegou ao fim”.

“Milei é um exemplo: ele é muito popular. Apesar de tudo o que se possa dizer sobre ele, é uma figura popular internamente, mas está transmitindo mensagens desconectadas da realidade. Ele pensa em uma era neoliberal, e esse mundo acabou”, afirma.

“O candidato que venceu no Chile, Kast, é um neoliberal, mas esse mundo acabou, é isso que a direita não entendeu”, continua.
Nesse sentido, o acadêmico argumenta que “a direita também carece de uma visão para o futuro […], estamos em um período de transição e não há clareza; poucos países têm clareza sobre para onde estão indo […], o momento de transição que estamos vivenciando […] não se reflete nas forças políticas“.
Consequentemente, ele acredita que, nos próximos anos, será observada uma constante alternância de poder, já que, diferentemente do consenso do final da década de 1990 e da primeira década dos anos 2000, não há consenso.

“A esquerda governou por muitos anos, e agora é hora de dar mais um passo, para ver se consegue no próximo ciclo. Não conseguiu neste, e foi aí que esse momento, chamado de onda rosa, terminou há algum tempo; estamos apenas vendo como o partido está sendo limpo“, concluiu.

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Fonte: sputniknewsbrasil

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