A Atuação da Defensoria Pública na Judicialização da Saúde


Por Synara Gusmão, Defensora Pública

A Defensoria Pública não é um balcão de favores. Ela não existe para burlar a fila do SUS ou

atender pedidos aleatórios de quem quer se beneficiar do sistema público. Nós trabalhamos

para garantir direitos fundamentais a quem, de fato, está vulnerável e teve suas tentativas de

solução negadas pelo próprio Estado.

No meu gabinete, a diretriz é clara: antes de qualquer ação judicial, esgotamos todas as

tentativas administrativas. Isso significa que, quando um assistido chega até nós, ele não sai

com uma ação judicial na mão no mesmo dia. Primeiro, ele precisa apresentar toda a

documentação necessária para que possamos fazer o encaminhamento administrativo

adequado. Nós damos ao Estado a oportunidade de cumprir seu papel, porque sabemos que

os recursos são limitados e que existe um critério para a alocação deles. A Defensoria não

pode ser usada como um atalho para quem não quer esperar a fila do SUS.

Mas o que acontece quando o Estado falha? Quando, mesmo diante de uma situação urgente,

a resposta que recebemos ignora a gravidade do caso e trata uma emergência como se fosse

algo que pode esperar? Aí sim, judicializamos. E judicializamos para valer.

O Caso Concreto: Quando a Regulação do SUS Quase Impediu a Ação

O caso que me fez escrever este texto é revoltante. Um adolescente de 14 anos com um

corpo estranho metálico no olho direito precisava de cirurgia de vitrectomia posterior com

urgência, segundo laudo de médico do próprio SUS. O laudo era claríssimo:

“A não realização deste procedimento em caráter de urgência pode acarretar em danos

irreversíveis à visão. O procedimento cirúrgico descrito acima não é realizado no serviço do

hospital.”

Diante disso, fizemos o que sempre fazemos: oficiamos o Estado para que ele procedesse

com a regulação do paciente e garantisse a cirurgia. Essa é outra função da Defensoria que

pouca gente percebe: nós também trabalhamos para garantir a regulação correta do paciente

no sistema de saúde.

A regulação do SUS, para quem não está familiarizado, não é um simples protocolo

burocrático. Ela traduz a realidade do paciente dentro do sistema de saúde. É a regulação que

diz se ele está na fila, onde está na fila e qual o grau de urgência do seu procedimento. Se a

regulação está errada, todo o acesso ao tratamento fica comprometido.

E foi exatamente o que aconteceu aqui. A regulação veio errada. Eles classificaram o caso

como eletivo. Eletivo! Como se o garoto pudesse esperar indefinidamente, mesmo com um

laudo médico dizendo que, se ele não operasse logo, poderia ficar cego.

E aí vem o grande problema: se eu fosse olhar só para a regulação, eu não poderia judicializar.

Simples assim. Porque a regulação, no papel, dizia que era um caso eletivo. E tudo que é

eletivo é o que pode esperar.

Esse é o perigo. Esse é o erro que pode fazer um paciente perder um direito. Se a gente passa

batido e não demonstra claramente na petição que a regulação está equivocada, o juiz pode

simplesmente olhar o documento e indeferir a liminar. Porque, do ponto de vista técnico, o

SUS já tinha colocado o paciente na fila, e a fila dizia que ele não tinha pressa.

Isso quase inviabilizou a ação.

E é por isso que, quando judicializamos, nós temos que demonstrar claramente que a

regulação não reflete a realidade do caso. A regulação está errada, e o que vale é o laudo

médico. A ação precisa ser bem fundamentada, porque não adianta apenas apontar a

urgência – precisamos provar que o próprio Estado errou na forma como tratou o caso dentro

do sistema.

Judicialização Não É Exagero, É Necessidade

Sempre ouvimos as mesmas críticas:

“A Defensoria judicializa demais!”

“Isso sobrecarrega o sistema judiciário!”

“Isso gera gastos para o Estado!”

O que essas pessoas não entendem é que a Defensoria não atende números, atende pessoas.

Não é uma estatística. Não é um dado no orçamento público. É um adolescente de 14 anos

que pode perder a visão por negligência administrativa.

Se o Estado tivesse cumprido seu dever e dado a regulação correta, essa ação nunca teria

existido. Mas quando a máquina pública falha, o nosso papel é ir para a guerra. E, sim, é uma

guerra. Uma guerra contra a burocracia desumana, contra a insensibilidade de quem olha um

caso como esse e enxerga apenas mais um papel na pilha.

O Estado precisa, sim, gerir seus recursos, mas ele teve a chance de fazer isso da maneira

correta. Ele não fez. Então, nós judicializamos mesmo.

E vamos continuar judicializando todas as vezes que uma falha dessas colocar a vida ou a

integridade de alguém em risco. Porque a Defensoria Pública existe para garantir que os

direitos fundamentais não sejam apenas palavras bonitas na Constituição, mas algo real,

concreto, acessível.

E é isso que fazemos todos os dias.

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