Carro a etanol nasceu há 50 anos no Brasil em meio à crise do petróleo


Início da década de 1970. A Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) reduziu a produção de matéria-prima para o desenvolvimento de combustíveis fósseis, o que fez os preços da gasolina e do diesel dispararem em todo o mundo. Este evento — conhecido como a “crise do petróleo” — abriu caminho para uma das maiores inovações da indústria brasileira até hoje: o carro a etanol.

Embora o primeiro automóvel movido exclusivamente pelo combustível tenha saído da fábrica em 1979, suas origens remontam a 1975. Em 14 de novembro daquele ano era criado o Programa Nacional do Álcool (Proálcool). Foi uma iniciativa conjunta entre montadoras de veículos, governo e acadêmicos para buscar uma matriz energética barata, limpa e menos vulnerável às variações internacionais, aproveitando uma matéria-prima abundante em nosso país: a cana-de-açúcar.

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Autoesporte ouviu especialistas para abordar passado, presente e futuro do uso do etanol no Brasil, partindo do desenvolvimento do 1° veículo sustentável, passando pelos modelos flex fuel, e chegando aos novos estudos deste combustível em um cenário de eletrificação.

Tudo começou quando os Estados Unidos apoiaram Israel durante a Guerra de Yom Kippur em 1973, o que gerou um cenário de tensão global. Como retaliação, países árabes afiliados à Opep impuseram um embargo na produção e distribuição de petróleo para todo o mundo.

Um registro da Associação Nacional das Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) aponta que a cotação do barril de petróleo saltou de uma média de US$ 1,9 em 1972 para US$ 11,2 em 1974. Este avanço sem precedentes atingiu todos os setores da economia — e o Brasil, dependente da gasolina importada, foi amplamente afetado.

A solução brasileira estava na exploração da cana-de-açúcar, vegetal originário da Ásia que cresce com facilidade na região. As primeiras mudas foram trazidas pelos portugueses da Ilha da Madeira em 1532.

Havia estudos quanto ao uso do etanol em automóveis desde 1975, como nos revelou Rogério Gonçalves, diretor da Associação Brasileira de Engenharia Automotiva (AEA). Inclusive, a entidade nasceu da união da indústria durante o período de adoção deste novo combustível.

“O programa foi criado com a finalidade de aumentar a quantidade de etanol anidro na mistura da gasolina. Entretanto, o governo viabilizou o projeto que daria origem ao carro movido a álcool”, contou o especialista.

Algumas oficinas tinham autorização para converter veículos da gasolina para o etanol. Durante esta primeira etapa de testes, constatou-se que o derivado da cana-de-açúcar era corrosivo para as partes internas dos motores.

Indo além, o poder calorífico mais baixo do etanol exigia preparação especial quanto à taxa de compressão, e ainda havia a necessidade de injetar gasolina para dar a partida a frio. “Estava claro que o motor a etanol não seria convertido, mas sim desenvolvido do zero”, disse Gonçalves.

A partir daí, a aliança formada por fabricantes, universidades, empresas de autopeças e especialistas ligados ao governo se empenhou em solucionar estes problemas. Nascia o primeiro motor a etanol para um carro de produção, fruto de um esforço coletivo da indústria:

Além de blindar o Brasil da flutuação internacional do preço do petróleo, o Proálcool empolgou os engenheiros pela redução significativa das emissões. Mesmo com todas as vantagens, a solução ainda era capaz de deixar o ar mais puro nas grandes cidades.

Foi somente em 1979, quatro anos após a oficialização do programa, que o Fiat 147 deixou a fábrica de Betim (MG) com seu motor a etanol. Se cinquenta anos depois os carros sustentáveis são lançados com os dizeres “100% elétrico”, o saudoso modelo, apelidado de “Cachacinha” orgulhava-se de sua tecnologia ao trazer a faixa “100% a álcool”.

O 147 foi apresentado no Estádio Governador Magalhães Pinto, o Mineirão, em uma grande cerimônia. Seu pequeno motor quatro-cilindros de 1.048 cm³ entregava 55 cv e 7,8 kgfm. Por causa do forte cheiro de cachaça que saia do escapamento, ganhou o apelido que carrega até hoje.

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Os primeiros meses não foram fáceis. Mesmo com os incentivos, poucos postos ofereciam etanol nas bombas. Porém, o combustível logo ganhou a confiança do brasileiro que estava disposto a gastar menos para se locomover. Da década de 1980 em diante, todos os carros eram lançados em duas versões: movidas a gasolina ou álcool.

Estes carros traziam o “tanquinho de partida a frio”. É um pequeno reservatório de gasolina alojado no motor, responsável por facilitar a ignição ao misturar os dois combustíveis nos dias frios. Isso porque o etanol tem dificuldade em vaporizar (passar do estado líquido para o gasoso) em temperaturas abaixo de 15°C.

“Houve um momento de baixa em meados de 1990, quando o preço da gasolina caiu e o país teve uma safra de cana-de-açúcar comprometida por conta do abastecimento internacional”, relembra Rogério Gonçalves, da AEA. “Dali em diante, as vendas de carros a álcool entraram em queda — isso até a invenção dos motores flex”.

Em meados dos anos 1990, montadoras e sistemistas iniciaram estudos para a criação de um motor que pudesse receber gasolina e etanol, em qualquer proporção. Entre os vários profissionais nesta linha de frente estavam Roger Guilherme, gerente de engenharia da Volkswagen, e João Irineu Medeiros, hoje vice-presidente de assuntos regulatórios da Stellantis.

A tecnologia se tornou viável comercialmente — e, em março de 2003, os primeiros carros com motores flex foram lançados: Volkswagen Gol e Fiat Palio. As bases eram os propulsores dos veículos a álcool, que já tinham peças feitas com materiais resistentes à corrosão.

A taxa de compressão foi ajustada para um meio-termo entre o etanol e a gasolina. Mas ainda faltava um sistema de gerenciamento para entender qual mistura estava sendo queimada a cada momento. Eis que surgiu a sonda lambda, substituindo o sensor de combustível dos propulsores convencionais.

Os dados colhidos pela sonda eram processados por uma central eletrônica criada pela Magneti Marelli chamada de Software Flexfuel Sensor (SFS). A tecnologia é capaz de entender qual é a mistura naquele momento para ajustar o tempo de ignição e que proporção de ar e combustível deve ser queimada.

A tecnologia brasileira chamou a atenção de empresas do exterior. Autoesporte contou a história de um Fiat Palio que cruzou o oceano para ser testado pela Bosch na Alemanha. Hoje o hatch mineiro pertence a um brasileiro que mora na Europa.

Como herança dos carros a álcool, os primeiros modelos flex traziam o tanquinho de partida a frio. Com novos recursos à disposição, as montadoras desenvolveram sistemas de pré-aquecimento dos bicos injetores e velas aquecedoras que facilitam a partida em baixas temperaturas, sem qualquer resquício de gasolina.

Os motores flex evoluíram ao longo das décadas seguintes, recebendo injeção direta de combustível, turbocompressores, novos materiais e até arquiteturas inéditas (caso dos propulsores de três cilindros). Foi um preparativo da indústria para o próximo passo.

Em 2019, o Toyota Corolla foi lançado com motor 1.8 aspirado flex aliado a um conjunto híbrido paralelo (HEV). Pela primeira vez, um carro eletrificado também poderia ser abastecido com etanol, embora sua eficiência seja mais notória com gasolina. Dois anos depois, em 2021, o Corolla Cross adotou essa mesma opção mecânica.

Durante a inauguração de sua fábrica em Camaçari (BA), a BYD mostrou o primeiro motor híbrido flex plug-in da história. O powertrain que irá equipar o Song Pro consiste em um propulsor a combustão 1.5 turbo flex e duas máquinas elétricas alimentadas por bateria. Ou seja, um carro compatível com etanol agora poderá ser plugado na tomada.

Se o futuro é elétrico, o etanol brasileiro merece um lugar. Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) já estudam um novo método para a utilização do etanol a partir de carros elétricos movidos a hidrogênio.

O sistema consiste em reatores que utilizam o derivado da cana-de-açúcar para extrair a célula de combustível, e esta é convertida em eletricidade para mover as rodas. Hoje, os carros movidos a hidrogênio exigem estações próprias — e caras — para reabastecer, mas com a adoção da nova tecnologia baseada no etanol, qualquer posto de gasolina resolverá este problema.

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Fonte: direitonews

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