A efervescência do debate sobre segurança pública no Brasil reforçou entre parlamentares e governadores de direita a defesa da implantação no país de um método inspirado na política linha dura de combate ao crime adotada em El Salvador, pela gestão do presidente Nayib Bukele.
Nesta semana, o senador Magno Malta (PL-ES) apresentou um requerimento para convidar Bukele a participar da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Crime Organizado no Senado e propôs uma visita ao país para conhecer a política adotada por lá. A visita também é defendida por governadores como Romeu Zema (Novo-MG), que integra o recém-criado Consócio da Paz, que visa articular medidas de segurança entre estados governados pela direita.
A política linha dura de Bukele fez El Salvador passar de um dos países mais perigosos do mundo para um dos mais seguros, mas é alvo de uma série de denúncias de violações sistemáticas de direitos humanos e garantias individuais.
Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas analisam se o método adotado por Bukele de combate ao crime funcionaria no Brasil, e se a megaoperação realizada no Rio de Janeiro pode fazer com que o tema se torne uma matéria eleitoral.
Thiago Rodrigues, do Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF), afirma que o modelo Bukele tem grande apelo na ultradireita por ser centrado na questão da repressão e do encarceramento. Ele frisa que organizações que acompanham o que ocorre em El Salvador estimam que já são 88 mil presos, o que significa quase 1,5% da população salvadorenha de 6 milhões e 300 mil.
“Se a gente fosse fazer uma conta parecida para o Brasil, daria por volta de 3 milhões e 300 mil pessoas presas. É quase a população inteira do Uruguai. Ou seja, é um modelo que não é exportável pela quantidade, o Brasil já tem uma grande população carcerária, na casa dos 900 mil, já é a terceira maior população carcerária do mundo”, explica Rodrigues.
Ele acrescenta que esse aumento expressivo de presos no Brasil, caso o método Bukele fosse adotado, se daria em um sistema penitenciário “que já é totalmente falido e sobrecarregado”, e que mesmo que houvesse investimento em construção de presídios, seria necessário multiplicar por quatro ou cinco vezes a atual estrutura prisional do país.
“Então, existe um problema real no Brasil de violência organizada. E como as pessoas não veem solução, não há soluções ofertadas que não sejam as altamente repressivas, esses políticos de ultradireita navegam nesse medo da população e na demanda real que existe por mais segurança.”
Rodrigues enfatiza que a redução da taxa de homicídios em El Salvador, de 103 mortos a cada 100 mil habitantes para atuais 1,7 mortos a cada 100 mil habitantes, se deu a partir de uma tática de prender em massa pequenos criminosos que têm mais perfil de violência, e fazer acordo com as lideranças das gangues, principalmente a Mara Salvatrucha.
“Há acordos de equilíbrio para evitar o confronto entre as gangues grandes, o Estado reprime as gangues pequenas, ou seja, favorece o crescimento das gangues grandes, desde que elas diminuam as práticas de violência nos seus territórios. Então o resultado imediato é uma diminuição muito grande mesmo da violência”, afirma.
Ignacio Cano, professor e membro do Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-UERJ), chama atenção para o custo produtivo que o modelo Bukele teria, caso adotado pelo Brasil, por conta do foco no encarceramento.
“Em algumas faixas etárias, quase 9% dos jovens de sexo masculino [salvadorenhos] estão na cadeia. Então, um de cada 11, cada 12 jovens de certa idade estão na cadeia. Isso é um custo para o aparato produtivo do país gigante” destaca.
Cano aponta diferenças entre o modelo Bukele e o método de enfrentamento ao crime adotado por cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo. Segundo ele, o modelo Bukele é pautado no encarceramento, enquanto o brasileiro mira a letalidade policial.
“A direita tenta se apresentar como dura ou duríssima contra o crime e aproveita, então, qualquer tipo de exemplo nessa direção, muito embora os exemplos sejam diferentes. Uma coisa é encarcerar maciçamente todo mundo, outra coisa é matar”, explica o analista.
Ele acrescenta que o sistema de Bukele é o primeiro de sucesso do modelo linha dura, já que os anteriores até agora tinham “fracassado estrondosamente, inclusive gerando mais violência”, como ocorreu no México, durante a vigência da política “mano dura” (mão pesada, em tradução livre), na gestão de Felipe Calderón (2006-2012), quando o Exército foi acionado para combater o narcotráfico e a taxa de homicídios triplicou em poucos anos.
“[…] ele tem conseguido, sim, diminuir não só os homicídios, mas também as extorsões, que eram um problema muito grave no país. É importante também dizer que o Bukele negociou com os grupos criminosos durante anos, como fizeram outros governos anteriores em El Salvador.”
Cano ressalta que o acordo firmando por Bukele com o governo do presidente estadunidense, Donald Trump, para receber deportados em troca de dinheiro também incluiu a repatriação de lideranças do crime que estavam sendo julgadas nos EUA.
Ulisses Augusto Pascolati Junior, professor de direito penal da Universidade Mackenzie Alphaville, elenca dois motivos que tornam impraticáveis a replicação do modelo Bukele no Brasil. O primeiro é a politica de retomada de territórios implementada por Bukele no Plano de controle Territorial, lançado em junho de 2019.
“El Salvador, e aqui é necessária referida observação empírica, tem um território aproximado de 21 mil km quadrados, e o Brasil, por sua vez, mais de 8 milhões e 500 mil. Assim, os objetivos, sob este viés, seriam diferentes e obviamente impraticáveis. É verdade que há locais nos quais os territórios são dominados por organizações criminosas, como no Rio de Janeiro, contudo, para estes locais é necessário um plano local para recuperação, não um plano nacional, como o do presidente Bukele.”
Ele acrescenta que há um elemento jurídico que impede a replicação do modelo, que é o fato de o Brasil não estar em regime de exceção, como El Salvador.
“Tem-se em El Salvador, por meio do regime de exceção, a permissão de que o preso fique 15 dias sem apresentação a um magistrado, sem contar a ocorrência de julgamentos coletivos com mais de 500 pessoas (acusados).”
Pascolati afirma não ter dúvidas de que o modelo Bukele será um tema explorado por governadores de direita nas eleições, mas frisa que há entraves jurídicos que impediriam que um estado brasileiro replicasse o sistema.
“As mudanças legislativas dependem do Congresso Nacional, o que foge da competência de qualquer estado da Federação.”
Como conter o crime organizado no Brasil?
Na avaliação de Cano, para conter o avanço das facções o Brasil necessita de vários componentes, sendo o primeiro a investigação dos tentáculos econômicos do crime organizado.
“Isso é fundamental para tentar estrangular a força econômica desses grupos. Em segundo lugar, você precisa investigar as conexões com o Estado. Porque todo crime organizado tem cumplicidade no aparato do Estado. Naquela execução que aconteceu recentemente de um delator do PCC no aeroporto de São Paulo, já as investigações mostraram que tem vários policiais envolvidos com essa rede.”
Em terceiro lugar, ele afirma que é necessário a retomada pelo Estado de áreas dominadas pelo crime através da entrada e permanência maciça nesses territórios de forças de segurança pública.
“Mas, basicamente, a execução sumária de suspeitos, a morte sistemática de suspeitos nunca acabou com o crime organizado no Rio. E, no caso de São Paulo, o massacre do Carandiru e as mortes de maio de 2006 são consideradas emblemáticas no processo de fortalecimento do PCC”, avalia.
Pascolati, por sua vez, afirma que o Brasil poderia adotar medidas como penas mais elevadas somadas a outras estratégias, já que “esse aumento sozinho não representará nada”.
“O enfrentamento por parte do Estado-Executivo-polícias, ou mesmo pelo Ministério Público, dentro de sua competência investigativa, deve contar com medidas modernas como, por exemplo, a possibilidade de utilização de softwares espiões, modelos efetivos de confisco, análise de inteligência, medidas de isolamento de líderes de organização e restrições quando do cumprimento de pena.”
Fonte: sputniknewsbrasil
