Com apoio da Marinha, Brasil dribla falta de recursos na produção de radiofármacos contra o câncer


O reator, que está localizado na sede do IPEN, em São Paulo, foi o primeiro do Brasil e entrou em operação em 1957. Após viver épocas áureas de alta produtividade, o equipamento acabou subaproveitado nas últimas décadas.
Isso porque o IPEN, órgão de pesquisa da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e principal produtor de radiofármacos do país, vem enfrentando escassez de recursos humanos desde a década de 1990, devido à falta de concursos públicos para suprir as aposentadorias.

“É uma força de trabalho que vai diminuindo e que chegou, inclusive, a promover a parada da produção dos isótopos aqui. Então, com essa parceria com a Marinha, houve essa possibilidade de formação de mais operadores de reator e de retomar essa produção do reator contínua, em alguns dias da semana”, explicou a coordenadora do Centro de Radiofarmácia do IPEN, Elaine Bortoleti de Araújo, à Sputnik Brasil.

Iniciado em 2020, o convênio começa a colher louros, com cerca de 30 engenheiros químicos, elétricos e mecânicos da corporação atuando na produção contínua do lutécio-177, referência no tratamento de tumores neuroendócrinos e no combate ao câncer de próstata, como esclareceu o gerente do Centro do Reator de Pesquisas, Frederico Genezini. O treinamento começou em 2020, e em 2023 dez operadores foram certificados.

“E aí passaram também a se treinar, foi entrando um grupo maior. Hoje estamos fazendo 72 horas de operação.”

O pesquisador contou que o reator chegou a operar em turnos de 64 horas em 1995, produzindo uma parcela do iodo, isótopo muito usado em diagnósticos, para suprir o mercado nacional, mas as aposentadorias e a baixa taxa de reposição fizeram essa operação cessar. Segundo ele, a idade média dos trabalhadores do IPEN hoje é de mais de 65 anos e a chegada dos quase 30 oficiais da Marinha reverteu essa realidade.
Ele lembrou que a parceria com a Marinha é de longa data e que, nos anos 1980, pesquisas conjuntas inclusive ajudaram o Brasil a dominar o enriquecimento de urânio. Na época, foi construído o reator IPEN MB01 para testes de combustível para o submarino de propulsão nuclear. “Era uma parceria muito intensa.”
Com o novo convênio, o instituto agora irradia o lutécio-176 enriquecido, que é importado, e o transforma em lutécio-177, que, ao se ligar às células tumorais, entrega a radiação diretamente ao tumor para destruí-lo. Está prevista a produção de dois radionuclídeos para medicina e dois em bancada.
Genezini destacou a importância dessa produção para baratear o insumo, cuja utilização é inviável atualmente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), pois cada dose do radiofármaco custa em média R$ 30 mil.

“Ele [lutécio-177] é muito caro de importar, e a gente tem o sonho de começar a fornecer ao SUS, porque hoje não é um radioisótopo acessível para o sistema público.” Na verdade, esses radiosótopos são subsidiados. O que significa isso? Nós não pagamos imposto para importá-los. […] Só que […] nós estamos subsidiando clínicas privadas. Cerca de dois terços do que a gente produz vai para clínica privada. E é um sistema perverso”, explicou ele.

A coordenadora do Centro de Radiofarmácia salientou que, além de caro, o lutécio-177 exige grandes desafios, pois, como todos os radiofármacos, tem vida útil muito curta, e a logística de transporte e de armazenamento é onerosa e complexa:
“Não é um produto de prateleira, precisa ser produzido semanalmente e utilizado em curto espaço de tempo.”
A encomenda deve ser feita um ou dois dias antes da data de produção, e qualquer problema que ocorra no transporte muitas vezes ocasiona atrasos e até perda total do produto:

“Nem toda companhia aérea transporta material [radioativo]. […] tem problemas de desembaraço alfandegário, guerras, situações de bloqueio de espaço aéreo…”, elencou Araújo. “Então adquirir a autonomia da produção em território nacional é um fator extremamente importante”, ressaltou.

A coordenadora do IPEN comentou que estão sendo produzidos lotes-piloto do radiofármaco e sendo feitos estudos clínicos que envolvem várias instituições clínicas no estado de São Paulo, como o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP), o Hospital do Câncer de Barretos e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Uma vez demonstrada a eficácia do medicamento, ele poderá ser produzido industrialmente para um estudo clínico mais amplo, que possibilite o registro do produto.

“A produção nacional, por si só, já traria uma redução bastante expressiva no custo da dose desse medicamento, para atingir realmente o Sistema Único de Saúde”, comentou ela.

Cooperação entre IPEN e MEPhi impulsiona o setor nuclear no Brasil e na Rússia - Sputnik Brasil, 1920, 25.03.2024

Quem não tem cão, caça com gato

O Brasil tem terras raras abundantes para produzir essas substâncias, o que falta é tecnologia para dominar todo o processo dessa produção, como no caso do lutécio, explicou o gerente do Centro do Reator de Pesquisas.

“A gente tem que comprar o lutécio enriquecido. O insumo, o que vai ser irradiado, ele é enriquecido. E, para chegar no enriquecimento alto, está muito difícil encontrar no mercado.”

O Brasil minera o urânio, além de enriquecê-lo e irradiá-lo. Na irradiação, é possível separar do urânio o molibdênio e mesmo o iodo. Por outro lado, o lutécio não pode ser produzido a partir da separação do urânio.

“Na teoria, todo mundo sabe fazer, […] o problema é quando vai na prática; sempre tem o pulo do gato, que ninguém conta. Nós estamos trabalhando nisso no projeto RMB [Reator Multipropósito Brasileiro]. Mas hoje não temos [lutécio], então a gente tem que importar.”

Entretanto, ele celebrou que o IPEN tenha uma linha de pesquisa que busca esse processo com a irradiação de outro nuclídeo, chamado itérbio, que então produziria o lutécio.

“Estamos começando a implementar em escala-piloto. E vendo como essa metodologia que a gente desenvolveu se comporta em larga escala.”

A partir da aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o produto estaria pronto para ser distribuído, inclusive no SUS, ponderou, o que ajudaria a baratear o preço do insumo importado.
© Foto / Jonas PonzettoReator IEA-R1, do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), saiu de um jejum de mais de 15 anos graças a uma parceria com o Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP)

Reator IEA-R1, do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), saiu de um jejum de mais de 15 anos graças a uma parceria com o Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP) - Sputnik Brasil, 1920, 18.09.2025

Reator IEA-R1, do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), saiu de um jejum de mais de 15 anos graças a uma parceria com o Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP)

Nem tanto ao céu nem tanto à terra

Por enquanto a meta é menos ambiciosa, informou Genezini: começar a produzir iodo dentro da parceria com a Marinha a partir de 2026.

“E, se a gente tiver essa operação no mesmo ritmo […] do lutécio, do qual falamos, vamos produzir quase a quantidade total de iodo que o Brasil precisa”, comemorou. “Se a gente pudesse produzir isso, especialmente mandar para o SUS, isso seria fantástico.”

No médio prazo, o iodo poderia até substituir parcialmente o molibdênio — na verdade o produto do decaimento do molibdênio, que é o tequinécio, usado para fazer exames.
A expectativa do instituto é que o lutécio-177 produzido já esteja pronto para qualificação no primeiro semestre de 2026, para aprovação do uso em clínicas.

“Essa é a nossa meta. Até porque esse convênio não se sustentaria sem esse impacto na sociedade.”

O convênio termina em 2027, e a prioridade da Marinha é formar oficiais para o seu programa de propulsão naval nuclear. Mas o pesquisador torce para que a corporação tome gosto pelos radiofármacos e a parceria seja permanente.

“É muito interessante para a Marinha também ter aplicações sociais. […] a nossa esperança é que, quando o seu impacto ficar bastante interessante, a Marinha também não vai querer perder esse protagonismo na produção.”

Ao salientar que um dos desafios de todo país é reter mão de obra capacitada e o conhecimento em território nacional, ele explica que, no caso da Marinha, por serem servidores, essa retenção de conhecimento está ocorrendo.

“A manutenção do conhecimento de produção de radioisótopos para medicina também vai ser muito útil para o RMB e para outras iniciativas que o Brasil possa ter no futuro.”

Os principais fornecedores desses insumos para o Brasil atualmente, sobretudo o molibdênio-99, são Argentina, África do Sul, Rússia e Holanda. Já o lutécio-177 vem prioritariamente da Rússia e de Israel. No caso da separação do urânio do molibdênio, a Argentina, por exemplo, tem essa tecnologia.

“A Argentina, do ponto de vista nuclear, ela tem uma robustez maior porque o nosso programa nuclear varia de governo para governo. E lá não. Lá eles têm isso como um programa de Estado”, comentou o funcionário do IPEN.

Ele lembrou que um dos objetivos do Reator Multipropósito Brasileiro é mudar essa realidade e universalizar o acesso a esses radiosótopos no Brasil.
© Foto / Jonas PonzettoServidores do IPEN

Servidores do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN) - Sputnik Brasil, 1920, 18.09.2025

Servidores do IPEN

Reator Multipropósito Brasileiro

Em 2022, a Emenda Constitucional (EC) 118 derrubou o monopólio estatal na fabricação desses medicamentos, com o objetivo de democratizar o acesso e viabilizar a produção regionalizada. Mas a mudança não melhorou o acesso a esses medicamentos pela população mais pobre.
De acordo com a Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear e Imagem Molecular (SBMN), a especialidade cresce 11% ao ano e cerca de 2 milhões de exames são realizados com radiofármacos anualmente. A responsabilidade de produção de radioisótopos é do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, do qual o CNEN faz parte como autarquia, respondendo pelo IPEN.
Dos radiofármacos mais consumidos, cerca de 80% estão associados ao molibdênio, que exige muita radiação. O RMB, que está sendo construído na cidade de Iperó (SP), promete ser capaz de atender a essa demanda e garantir ao Brasil autossuficiência na produção dos isótopos utilizados nos radiofármacos.
Na planta constam centros de pesquisa para produção de radioisótopos para a saúde, a agricultura, a indústria e o meio ambiente.
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Fonte: sputniknewsbrasil

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