Eu estava a caminho de um ateliê de pintura de capacetes em Jundiaí, a 60 km de São Paulo, naquela manhã de 1º de maio de 1994. Ia de moto com um amigo e notei que a maioria dos veículos seguia em baixa velocidade, vi que muitos ocupantes choravam. Presumi que o pior havia acontecido.
Na época, os compromissos dominicais eram marcados para depois do GP, hábito que se tornou frequente a partir da temporada de 1988, quando Ayrton Senna, recém-contratado pela McLaren, passou a competir com um carro à altura de seu talento nas pistas. Mas naquele domingo saí de casa com as imagem do acidente em Ímola na cabeça. E só fui saber da morte de Ayrton mais tarde. Nascia o que a comoção popular consagraria como herói nacional.
Ayrton Senna da Silva herói? Bertold Brecht, o teatrólogo alemão, disse em sua peça Vida de Galileu, em 1938: “Infeliz da nação que precisa de heróis”. Concordo: para mim, era difícil digerir a honraria póstu- ma. Ayrton foi o melhor piloto de sua geração e, por causa disso, passou a ser idolatrado não apenas no Brasil mas em todo o mundo. Sua trágica morte causou comoção e seu funeral em São Paulo reuniu, entre o cortejo e o velório, cerca de 3 milhões de pessoas (o velório de Pelé, outro ídolo mundial do esporte, foi acompanhado por 230 mil pessoas).
Mas Ayrton Senna não foi herói. Era um piloto devotado que, de- pois dos treinos e da corrida, estu- dava as planilhas para comparar o desempenho de seu carro com o dos rivais e buscava tirar pentelhésimos de segundo em cada curva. Pela dedicação, foi recompensado com três títulos, 41 vitórias, 65 poles e 80 pódios em dez anos de F1.
Convivi com Ayrton durante duas temporadas e, depois, como vizinho em um bairro central de São Paulo. Em várias ocasiões, pude comprovar que seu domínio sobre a máquina era assombroso. Um ano antes de sua morte, eu voltava para casa à noite quando vi o Honda NSX preto aguardando o sinal em uma travessa da Avenida Angélica, em São Paulo.
Parei minha Saveiro ao lado, fiz uma provocação qualquer e Ayrton revidou. Falou que tinha uma “bomba” para contar (sua saída da McLaren e o teste que faria com um F-Indy nos Estados Unidos). Subimos a avenida com os carros emparelhados em marcha lenta, ele debruçado no banco do carona com a mão esquerda no volante. Durante o trajeto, o NSX seguiu no mesmo alinhamento, a milímetros de distância da Saveiro.
Também testemunhei de perto a admiração que os fãs, gente de todas as classes e origens, tinham por Ayrton. Quando ele conquistou seu primeiro título, em 1988, em Suzuka (Japão), vi Soichiro Honda, então conselheiro supremo da Honda, inclinar-se em reverência ao piloto (a McLaren MP4/4 era equipada com motores Honda). Sim, vi Soichiro Honda se curvar para Ayrton Senna.
E foi no helicóptero de Soichiro que ouvi a perturbadora revela- ção de Ayrton. Em 1989, viajamos para o Japão no mesmo voo, ele na primeira e eu na última clas- se. Em determinado momento, ele veio ao meu encontro e ofereceu carona de Tóquio a Suzuka no helicóptero particular do magnata. Antes de aterrissar no heliponto do circuito, Ayrton pediu ao piloto que mantivesse a aeronave paira- da e apontou para o horizonte. “Foi nesse lugar que Deus surgiu para mim”, disse, consternado.
Fui para o hotel rememorando as duas horas de conversa e confidências, escrevi um longo texto, mas resolvi não enviar para o jornal em que trabalhava. Cinco anos depois, naquele 1o de maio, foi como se eu tivesse perdido um irmão, não um herói.
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Fonte: direitonews