Mergulhado no caos: por que colapso no Haiti pode ser lido como ‘o nosso fracasso’?


“O Haiti entrou para um universo que é muito triste, que é o universo dos conflitos sobre os quais não se fala”, sintetiza Omar Thomaz, livre docente pelo Departamento de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e licenciado em história da arte pela Universidade de Barcelona.
Em entrevista ao Mundioka, podcast da Sputnik Brasil, o analista ponderou que o Haiti se encontra na situação descrita pelo contexto histórico acerca do conflito na Ucrânia e, também, da guerra na Palestina, em detrimento dos acontecimentos no país caribenho.
Se de um lado, segundo Thomaz, o conflito ucraniano tem apelo pelo contexto europeu e por remeter à memória permanente da Guerra Fria, pelas posições de Rússia e EUA no embate, a guerra em Gaza traz em seu seio conflitos de alguma forma intrínsecos na construção histórica das relações entre israelenses judeus e a população árabe, algo que já ocupa o cenário midiático desde a própria fundação do Estado de Israel — além de uma guerra, de fato, chancelada pelo governo israelense.
Um homem caminha entre os escombros de um prédio desabado em Porto Príncipe após o terremoto que atingiu o Haiti em janeiro de 2010. - Sputnik Brasil, 1920, 12.01.2025

Enquanto isso, longe dos holofotes midiáticos, no Haiti mais de um milhão de pessoas foram deslocadas no ano passado. Hospitais foram fechados, aeroportos tomados e prisões invadidas. Grupos milicianos controlam grande parte da capital Porto Príncipe e do entorno.
“No Haiti existe uma percepção muito clara por parte das pessoas de que se você ficar parado é mais ou menos algo próximo à morte”, revela o especialista.
Atualmente, boa parte da capital do país caribenho e de cidades do entorno são controladas por gangues armadas, que impedem a formação de um governo de conciliação para novas eleições no Haiti, e que monitoram e interferem a possibilidade de ir e vir da população comum, que, cansada da situação, faz manifestações políticas e sai às ruas para pedir democracia e acaba inflamando o conflito, gerando uma situação complexa no país.

Explosão contemporânea é resultado de incursões passadas no país caribenho?

Segundo Thomaz, o país em ebulição encontrado hoje é fruto de fracassos do mundo com o Haiti. Desde o movimento neocolonial que ocupou a ilha caribenha em 1915 à Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti (Minustah), missão de paz liderada pelo Brasil que foi de 2004 a 2017.
Em relação à última intervenção, o analista contou que esteve no Haiti trabalhando anos antes. De acordo com ele, havia carência e frustrações de jovens em relação às dificuldades para encontrar empregos, mas não havia uma guerra como era falado.

“Naquele momento, o Haiti não precisava de exército. O Haiti precisava de investimentos em infraestruturas públicas, o Haiti precisava de empregos, o Haiti precisava de médicos, o Haiti precisava de apoio aos professores”, avalia.

Até aquele momento, inclusive, o Haiti estava fora das grandes rotas de tráfico de drogas e de tráfico de armas, conforme Thomaz. O que se inverte desde então é que as atividades passaram a fazer parte das rotinas de gangues no país.
Manifestante segura bandeira do Haiti durante protesto que pede a saída do primeiro-ministro, Ariel Henry, em meio à escalada da violência no país. Porto Príncipe, 2 de março de 2024 - Sputnik Brasil, 1920, 05.01.2025

O Brasil não levou para o Haiti uma sabedoria de paz. O Brasil levou para o Haiti uma sabedoria de tráfico de armas e tráfico de cocaína — evidentemente, ficou uma assinatura das Nações Unidas embaixo […]. Quando o Brasil sai do Haiti em 2017, ele sai a toque de caixa, sem prestar conta de nenhuma das brutalidades que fez.”
Talvez a ideia de o Haiti ser um país miserável e que sempre esteve em conflitos desde o pós-independência ao longo do século XIX — o que é uma falácia, garante Thomaz — inclua o país nesse “silêncio midiático” global.
Ao contrário do imaginado, o Haiti do pós-independência era um país afluente, com campesinato afluente, mas que começa a ser destruído com a invasão norte-americana em 1915. Depois disso, o país esteve na média da situação dos países do Caribe ou da América Central e, durante o começo da década de 1960, tinha o produto interno bruto (PIB) compatível ao da Coreia do Sul.
O que atrapalha o país na sequência desses anos? “Uma atuação ditatorial brutal, com apoio norte-americano e francês, o que provoca o exílio de boa parte dos intelectuais, de pessoas e de profissionais capazes no Haiti, que têm que ir embora”, explica Thomaz.
Soldados da paz da ONU do Brasil patrulham na favela de Cite Soleil, em Porto Príncipe. Haiti, 21 de março de 2011 - Sputnik Brasil, 1920, 12.03.2024

Apesar de todo o aniquilamento sofrido pela ilha caribenha, o pesquisador chama a atenção para um ponto pouquíssimo comentado, mas que lança luz a uma representação interessante da sociedade haitiana: sempre é destacado que o Haiti está em crise, “mas por que nunca houve um ciclo de fome no Haiti?”
De acordo com o analista, além da produção local de alimentos, um fator que responde a pergunta é o fato de haver recursos enviados pela diáspora haitiana para o Haiti, o que alimenta a circulação de produção no país.
“O que existe de virtuoso no Haiti se deve fundamentalmente a características próprias dos haitianos, que dizem respeito a ciclos de reciprocidade”, explica.
Nesse sentido, ele resume: “O Haiti não é o fracasso do Haiti, o Haiti é o nosso fracasso.”
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Fonte: sputniknewsbrasil

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