EUA querem manter a hegemonia em um mundo onde ‘o Ocidente não dá mais as cartas’, notam analistas


Principal alvo da guerra comercial declarada pelo presidente estadunidense, Donald Trump, a China, entre as medidas tomadas em resposta à empreitada, acionou a Organização Mundial do Comércio (OMC) contra as tarifas impostas pelos EUA a produtos chineses, que já somam 245%. A medida também é cogitada pelo governo brasileiro.
Porém, a capacidade da OMC de funcionar como árbitro de conflitos comerciais globais está paralisada desde que os EUA passaram a boicotar a organização, bloqueando a indicação de novos árbitros para o Órgão de Apelação (OA) da OMC, que funciona como a última instância da organização para recursos em disputas comerciais.
O OA funciona com uma equipe de sete juízes, sendo três o mínimo necessário para decidir sobre um recurso. Por funcionar por meio de consenso, qualquer membro da organização pode bloquear a indicação de juízes para o OA. Desde 2017, os EUA vêm bloqueando novas indicações de árbitros, por críticas à atuação da organização que eles mesmos criaram. Nos anos seguintes, os mandatos dos árbitros do órgão foram encerrando, restando apenas o mínimo de três. Em 2019, a situação chegou a um nível crítico, quando restou apenas uma juíza no quadro da OA, o que paralisou o funcionamento do órgão.
À Sputnik Brasil, Vinícius Guilherme Rodrigues Vieira, professor de economia e relações internacionais na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), afirma que os EUA já deixaram a OMC de lado há algum tempo, desde o governo de Barack Obama (2009–2017), que tentou celebrar os chamados mega-acordos comerciais, como o Acordo de Associação Transpacífico (TPP, na sigla em inglês), que abrangia 12 países que circundam o Pacífico — EUA, Japão, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, México, Peru, Chile, Malásia, Cingapura, Vietnã e Brunei —, e o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP, na sigla em inglês), negociado com a União Europeia (UE).

“Só que esses acordos não vingaram. O TPP até vingou, porém não foi levado adiante por Trump, que o cancelou já no seu primeiro dia do primeiro mandato [2017–2021]. Então nós temos aqui, sim, a necessidade de um mundo não apenas multipolar, mas com organizações alternativas àquelas lideradas pelos EUA, porque fica claro que uma vez que essas organizações, como a OMC, não mais satisfazem os interesses americanos, eles tendem a deixá-las de lado”, explica Vieira.

Broken Chair, escultura do artista suíço Daniel Berset, que fica na Praça das Nações, em frente à sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Genebra, capital da Suíça, em 16 de julho de 2009 - Sputnik Brasil, 1920, 07.04.2025

O especialista afirma que os EUA perderam o interesse na OMC, assim como outras organizações internacionais, quando perceberam que, além de suas regras não mais atenderem seus interesses, “acabaram empoderando potenciais adversários, notadamente a China”, formando polos alternativos de poder.
“Essa é uma das contradições da ordem liberal internacional. Ela permitiu a ascensão de um mundo efetivamente multipolar, do ponto de vista econômico, e talvez bipolar ou tripolar, do ponto de vista político, como agora muitos dizem que temos três claros polos de poder, que são EUA, China e Rússia, e a Europa buscando se afirmar em um cenário em que o poder militar voltou a ser evidentemente valorizado.”
Para Vieira, é possível que organizações como a OMC sejam mantidas, mesmo com a saída dos EUA, “desde que haja um ou mais sponsors [patrocinadores]”. Segundo ele, o principal sponsor seria a China, mas seria necessário apoio sobretudo da UE e de países do BRICS.

“Com uma aliança União Europeia e BRICS, vejo, sim, a possibilidade de manter essas organizações sem a participação americana. E, claro, é necessário o apoio dos demais países do mundo. Então algo que envolva o BRICS, a União Europeia, já seria suficiente, a meu ver, para atrair o restante do G20, deixando os EUA relativamente isolados”, observa o professor.

Ele avalia que “os EUA perceberam que não conseguem mais dar as cartas no jogo que eles mesmos criaram”, ou seja, “o jogo da dita ordem liberal internacional e de sua expansão no pós-Guerra Fria, quando sem a competição apresentada anteriormente pela União Soviética (URSS), as normas liberais pareciam que prevaleceriam no mundo”, assim como as organizações internacionais.
Presidente chinês, Xi Jinping, durante banquete de boas-vindas para líderes visitantes presentes no Fórum da Nova Rota da Seda, em Pequim, em 29 de abril de 2019 - Sputnik Brasil, 1920, 02.08.2022

“Então eles tentam subverter esse jogo para ter mais influência e as demonstrações recentes sob Trump 2, principalmente na questão das tarifas, inclusive o próprio recuo, já que o dólar e os títulos da dívida americana começaram a entrar em xeque em função do alcance das tarifas. São demonstrações de que os EUA buscam se reposicionar fora do jogo que eles foram essenciais para criar. Eles buscam subverter a ordem, já que a ordem não mais lhes interessa, retomando um mundo não multipolar, mas um mundo de equilíbrio de poder entre grandes potências, o que não é interessante acho que sequer para a própria China”, afirma.
Segundo Vieira, esse cenário não é interessante para a China porque Pequim sempre se beneficiou de um mundo multipolar, com regras minimamente cumpridas, como é o caso da OMC.

“Então a China tem de decidir se vai ocupar ou não o espaço dos EUA, mas ainda que ela ocupe o espaço dos EUA, sozinha, ela não teria capacidade, a meu ver, de fazer grandes coisas. Porque, embora em decadência, a Europa ainda goza de grande status no cenário internacional, então […] nós temos a necessidade de a China fazer uma parceria com a União Europeia. Porque a China tem o poder econômico, mas a União Europeia ainda desfruta de amplo status, poder simbólico no ambiente internacional.”

Globo mostrando o mapa do mundo - Sputnik Brasil, 1920, 25.03.2025

O especialista sublinha que o que causou a ascensão do mundo multipolar foi justamente a ordem liberal internacional, “que propiciou o deslocamento de produção para fora do eixo historicamente associado à revolução industrial, que é o eixo do Atlântico Norte”, viabilizando com que países, principalmente a China, pudessem converter seu capital econômico acumulado em um modelo político, por meio de iniciativas como o BRICS e a Iniciativa Cinturão e Rota, popularmente chamada de Nova Rota da Seda.
“Ou seja, essa multipolaridade é consequência direta da maneira como o sistema internacional, do ponto de vista econômico, passou a ser configurado no pós-Guerra Fria. Os EUA, porém, acreditaram que a China se renderia do ponto de vista simbólico normativo ao modelo ocidental, o que não aconteceu. Daí a divergência entre os dois polos. Mas os EUA não estão nem contra a China por ela ser um regime de partido único, mas porque ela é um grande competidor geopolítico, geoeconômico, tendo convertido seu poder econômico em poder político, inclusive em poder militar. Os EUA, mais do que defensores de valores liberais, estão hoje defendendo a sua própria pele, sua capacidade de sobrevivência em um mundo que, pela primeira vez em 200 anos, não apenas os americanos, mas o Ocidente em geral não dá mais as cartas.”
Por sua vez, Hugo Albuquerque, jurista, editor da Autonomia Literária e analista geopolítico, afirma à reportagem que “a necessidade de um mundo multipolar existe desde sempre, não apenas na crise atual”.
“Ela [crise atual] é só uma crise que revela uma doença de desequilíbrio de poder no mundo”, afirma.
Ele avalia que é possível manter as organizações internacionais sem os EUA, embora afirme que isso não seria o ideal.
“É óbvio que o mundo sem os EUA é um mundo manco, em algum aspecto, mas não é um mundo inviável. E outros organismos, organizações, podem suprir o papel organizativo americano, até porque ele tem falhado.”
Bandeiras dos países-membros do BRICS durante a 15ª cúpula do agrupamento, em Joanesburgo, na África do Sul - Sputnik Brasil, 1920, 26.02.2025

Para Albuquerque, os EUA têm o desejo de manter a hegemonia global, e vêm tomando medidas que têm um fundo de manutenção dessa ordem unipolar, ao mesmo tempo que tentam resolver problemas econômicos internos de curto prazo.

“O próprio fim da guerra na Ucrânia é um objetivo econômico americano. Ele não é visto como um objetivo geopolítico maior, é uma forma de tentar tirar uma pressão da economia no curto prazo.”

Ele acrescenta que a ascensão do mundo multipolar foi possível porque “muitos países grandes foram capazes de ‘hackear’ a globalização”, de maneira que “os EUA precisaram absorver esses países dentro da globalização, que era o seu grande plano econômico internacional”.
“Os EUA ganharam muito dinheiro com isso, mas tiveram de conviver com países grandes, enriquecidos e que se reorganizaram com esses recursos. A partir daí, o resultado da globalização não foi a unipolaridade, mas a negação da unipolaridade que a fundou. Os EUA ficaram com um problema e, agora, tentam resolver isso de maneira bruta no governo Trump, mas também no governo [Joe] Biden a gente viu medidas do mesmo tipo”, afirma.
Ele frisa que a tentativa dos EUA de manter a unipolaridade “coloca em rota de colisão Washington, Moscou e Pequim”, e o mundo vai precisar chegar a um acordo. Nesse contexto, o papel do BRICS é de grande relevância.

“O BRICS acaba sendo um desafogo, uma possibilidade da criação de um sistema global econômico e político alternativo a essa ordem sob domínio americano. Por isso, desperta tanto interesse do chamado Sul Global”, conclui o analista.

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Fonte: sputniknewsbrasil

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