‘Fadado ao fracasso’: resiliência da China e pressão de big techs inviabilizaram o tarifaço de Trump


Poucos dias após causar pane nos mercados globais ao anunciar um pacote de tarifas contra 184 países, que ficou popularmente conhecido como “tarifaço”, o presidente dos EUA, Donald Trump, arrefeceu o discurso.
Chamadas de “tarifas recíprocas” sobre importações, as taxas aplicadas no tarifaço eram calculadas com base no déficit comercial dos EUA com os respectivos países-alvo da medida.
Porém, ao longo dos últimos dias, o que começou com um anúncio incendiário amornou gradativamente. No dia 9, uma semana após o tarifaço, Trump voltou atrás e reduziu de 20% para 10% as tarifas recíprocas, além de determinar uma pausa de 90 dias na aplicação das taxas. Três dias depois, em um novo recuo, o líder estadunidense isentou da medida smartphones, chips e computadores.
Os recuos de Trump vieram na esteira do aumento de tom daquele que é apontado como o principal alvo do tarifaço: a China, que respondeu ao tarifaço aplicando contratarifas a Washington e elevando o percentual a cada nova taxa anunciada por Trump. Em paralelo, o mercado interno dos EUA foi abalado pelo tarifaço, que levou à venda em massa de títulos do Tesouro dos EUA — ativo considerado um porto seguro da economia do país em tempos de crise.
Em entrevista à Sputnik Brasil, analistas explicam o que levou Trump a abrandar a retórica no tarifaço e o que o recuo sinaliza sobre a posição dos EUA em um mundo em profunda mudança.

Tarifaço expôs o quanto a economia dos EUA depende da China

Diego Pautasso, doutor em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e analista de relações internacionais, avalia que o recuo de Trump expôs o quanto a economia dos EUA depende da China.

“Trump recuou porque, diferentemente dos outros países, os Estados Unidos têm uma dependência enorme de peças, componentes e produtos finais da China, e por isso acabou isentando os eletroeletrônicos, que representam um quarto de tudo o que os Estados Unidos importam, sem que a China tivesse feito absolutamente nenhum outro gesto que não a reciprocidade tarifária. Então o elemento determinante é o grau de dependência que a economia americana tem da economia chinesa”, aponta o analista.

Bandeira da China tremula acima de edifícios de escritórios em Xangai. China, 14 de abril de 2016 - Sputnik Brasil, 1920, 11.04.2025

Para Pedro Allemand Mancebo Silva, pesquisador do Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), a resiliência da China “com certeza” teve peso no recuo de Trump.
“As tarifas de importação foram usadas como estratégia para negociar condições de comércio de forma bilateral com o restante do mundo, visando impor um custo alto à ausência de negociação. A retaliação chinesa no mesmo tom foi importante para dissuadir os EUA, uma vez que a China é o terceiro maior parceiro comercial dos EUA, atrás apenas de México e Canadá, e também produz e importa equipamentos eletrônicos e materiais de consumo presentes no dia a dia de muitas pessoas, inclusive cidadãos dos EUA — e que são produzidos com capital estadunidense e distribuídos por empresas estadunidenses, gerando prejuízos e custos extras para esses atores.”

Pressão das big techs e do mercado interno dos EUA

Pautasso afirma que diversos empresários, forças econômicas e políticas nos EUA, incluindo Elon Musk — dono da Tesla e da SpaceX, que se tornou um dos principais nomes do governo Trump, atualmente chefiando o Departamento de Eficiência Governamental (DOGE, na sigla em inglês) — fizeram pressão contra o tarifaço, “porque as tarifas tornariam absolutamente inviável parte da economia americana”.
Nesse contexto, ele acrescenta que “o tempo jogava a favor da China e das fissuras internas, e essas pressões iriam fazer Trump recuar também no caso da China”. Ademais, Pautasso aponta que a tática adotada por Trump, sem um planejamento necessário, teve impactos internos negativos.
“Entre os muitos efeitos desse tarifaço teve a redução das ações em bolsa de valor, teve a venda dos títulos do Tesouro, teve pressão de diversos segmentos econômicos no governo Trump, e isso tudo fazia parte do conjunto de contradições de uma tomada de decisão — no caso, o tarifaço, que não foi construído pelos arranjos políticos institucionais dos EUA e, tampouco, fazia parte de ações mais abrangentes, voltadas a recuperar a capacidade produtiva e industrial dos EUA.”
Homem sem-teto dorme perto do Touro de Ouro, réplica do Touro de Wall Street, símbolo do mercado financeiro, fora da B3, São Paulo, 17 de novembro de 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 10.04.2025

Silva acrescenta que Musk representa a adesão de empresários das big techs ao governo Trump, assim como outros, como o CEO da Amazon, Jeff Bezos, o cofundador do PayPal, Peter Thiel, e o CEO da OpenAI, companhia criadora do ChatGPT, Sam Altman.

“Todos esses, para seus atuais negócios e para seus planos futuros, dependem da estabilidade do fornecimento de equipamentos eletrônicos, circuitos integrados, muitos dos quais são produzidos fora dos EUA e só chegam lá após serem montados. São os bens chamados de cadeia longa, cuja cadeia de valor engloba serviços, recursos, produtos e trabalhos geograficamente dispersos para a sua produção”, afirma o analista.

Silva afirma ainda que investimentos em desenvolvimento de tecnologias, como a inteligência artificial, “demandam equipamentos cuja produção é bastante internacionalizada”.
“Esse conjunto de atores do setor de tecnologia é bastante importante para a eleição de Trump e para a sua legitimação, então medidas que afetem negativamente esse setor não são algo que favoreça a administração Trump junto às elites estadunidenses.”

Aposta de Trump foi bem-sucedida?

Uma das principais teses apontadas por analistas a respeito da intenção de Trump ao anunciar o tarifaço é que o presidente norte-americano tinha a expectativa de impor uma retórica agressiva que obrigasse líderes globais a buscar os EUA para o diálogo. Nesse contexto, as tarifas colocariam os EUA em uma posição privilegiada, com margem para obter mais vantagens sobre os demais países. Porém, Pautasso afirma que, desde o início, as tarifas “estavam fadadas ao fracasso”.

“Primeiro porque tarifas por si só não são suficientes para recuperar uma capacidade produtiva que foi envelhecendo ao longo das últimas quatro, cinco décadas, em parte pelo predomínio de uma visão de mundo neoliberal que gerou desindustrialização e envelhecimento da infraestrutura e da capacidade estatal dos EUA. Esse é o primeiro ponto.”

Cédulas de dólar americano e euro (imagem de referência) - Sputnik Brasil, 1920, 09.04.2025

Ele acrescenta que o segundo ponto é que a opção por um tarifaço levaria a “uma reação, um alvoroço global, como produziu, e por não ter nenhum tipo de planejamento, obviamente ia gerar recuos”.
“E agora o que nós temos é falta de regras, incerteza, a revelação da fraqueza, do despreparo da elite americana, em um quadro que, obviamente, a China sai fortalecida mais uma vez.”
Para Silva, a leitura relativa à aposta ambiciosa de Trump “ajuda a dar sentido a uma ação tão contraproducente do ponto de vista econômico” que ele considera “que teve um sucesso limitado”, uma vez que não foram muitos os países que buscaram os EUA para negociar condições e, entre os que buscaram, não estão seus três maiores parceiros comerciais: China, Canadá e México.

“Outro ponto é que a relocação produtiva e a reorganização da indústria não é um objetivo de curto prazo e, a depender de como se desenrola a situação, pode nem acontecer. A questão é que, ao tentar forçar a negociação via sobretaxação dos produtos importados, Trump impôs um alto custo aos EUA, a suas empresas e cidadãos, ao mesmo tempo em que afeta negativamente parceiros históricos e estratégicos, precipitando uma série de medidas voltadas à proteção contra as tarifas e uma diversificação de parcerias comerciais que diminuam a vulnerabilidade a novos ‘tarifaços’.”

Tarifaço como sinal do fim da hegemonia dos EUA

Pautasso afirma que, por detrás da intenção de elevar tarifas, com o objetivo de gerar empregos e promover a capacidade produtiva norte-americana, há o reconhecimento de que “os EUA não têm mais condição de exercer a hegemonia e a liderança global”.
“A prioridade [norte-americana] passará a ser a recomposição da economia doméstica, embora não creio que isso tenha sido bem-feito, e aumentar a influência sobre a esfera regional — no caso, a América Latina —, embora também não necessariamente esses objetivos serão alcançados, porque a China tem relações e investimentos e um comércio que cresce em uma velocidade muito maior do que os EUA na região”, explica.
Em Savannah, no estado norte-americano da Geórgia, navio de contêineres aparece carregado no porto local, em 29 de setembro de 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 03.04.2025

Ele acrescenta que a hegemonia, por um lado, é baseada em poder econômico, tecnológico, militar, mas que, ao romper com o multilateralismo, Trump abriu espaço para outros atores, entre eles China e BRICS.

“Ao tomar medidas unilaterais, ao produzir incertezas, ao quebrar regras, contratos e previsibilidade, o governo Trump obviamente enfraquece a hegemonia, deixa um vácuo aberto para que se crie novos mecanismos de governança. E, nesse quadro, obviamente que China e BRICS têm um potencial importante de vir a ocupar um espaço de crescente relevância.”

Silva, por sua vez, destaca que por muito tempo foi discutido o papel da hegemonia nas relações internacionais como mecanismo de estabilidade, uma vez que a presença de um ator ou um conjunto de atores hegemônicos age como sistema de estabilização, tanto do ponto de vista dos Estados, da ausência ou limitação das guerras, como do ponto de vista econômico, ao providenciar regras para o comércio internacional.
“Só que em momentos de declínio e contestação de um determinado ator hegemônico, eles também podem lançar mão do caos como estratégia política; em especial, para se desvencilhar de amarras impostas pelas regras hegemônicas. Me parece que os EUA vêm fazendo isso há algum tempo com o sistema ONU [Organização das Nações Unidas] — com a invasão do Iraque ou com o apoio ao genocídio em Gaza —, mas agora entrou na seara econômica, afetando o comércio internacional e buscando reverter déficits comerciais. Calhou que, nesse momento, [temos] no poder Donald Trump, que há muito crê na necessidade de uma política protecionista para os EUA”, afirma.
Ele avalia que, ao perturbar a ordem hegemônica vigente, um dos benefícios que os EUA poderiam estar mirando é se reposicionar “por meio de negociações e acordos bilaterais, talvez criando novas parcerias para conter a influência chinesa”.
“Em termos econômicos, é difícil ver o déficit comercial dos EUA se revertendo e, mesmo que isso ocorra, é difícil ver como isso poderia ser benéfico para a economia dos EUA.”
Silva afirma que “as ações de Trump, de fato, prejudicam a posição dos EUA na geopolítica global” como ator hegemônico, porque criam uma crise de confiança que abrange aliados tradicionais, como o Canadá, que recentemente declarou que os EUA não são mais um parceiro confiável e que a relação entre os países está entrando em uma fase “fundamentalmente diferente”.
Ele ressalta que “essa crise de confiança no ator hegemônico é péssima”, pois um dos elementos para o funcionamento das instituições multilaterais da governança global “é justamente a confiança nesses mecanismos e, ao fim e ao cabo, no ator que serve de fiador para esses mecanismos”.

“É possível que outros atores e outros blocos se beneficiem dessa crise, mas precisam compreender bem quais instrumentos utilizar para se promover enquanto alternativa ou enquanto nova ordem mundial. É importante notar que, até o momento, China e Brasil têm se posicionado a favor do multilateralismo e do livre-comércio, representando mais uma defesa do sistema vigente do que uma iniciativa de reforma e sem coordenação aparente para pensar uma resposta mais profunda a essa confusão do momento”, afirma.

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Fonte: sputniknewsbrasil

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