Foi-se o tempo em que o pescoço e o pé de frango eram frequentadores assíduos da mesa da população mais pobre do país. Ao contrário do que o presidente Lula afirmou durante o processo de aprovação da reforma tributária, esses cortes não correspondem mais à carne “que o povo come todo dia”.
E a razão é simples: exportadas, as partes consideradas “de segunda” ou menos nobres no mercado doméstico adquirem status diferenciado e preços atrativos.
O pé de galinha é emblemático. À exceção de alguma demanda em Minas Gerais ou como fonte de colágeno para sopas, esse corte é quase todo embarcado para a Ásia. Vendido no Brasil, alcança cerca de 30 centavos de dólar o quilo. Já os chineses se dispõem a pagar de 3 a 4 dólares pelo quilo, o dobro do que pagam pelo peito de frango. Até a pandemia, eles importavam mais o pé de galinha “Tipo A”, ou premium. De lá para cá, contudo, arrematam praticamente todos os estoques disponíveis, mesmo os cortes imperfeitos ou danificados.
“Nós produzimos mais de 12 bilhões de pé de frango por ano. O pé tem um valor muito grande, ele inclusive ajuda a dar equilíbrio econômico-financeiro para as empresas. Ajuda a amenizar o custo de produção e a ter um frango mais barato para o brasileiro”, explica Ricardo Santin, presidente da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA).
País construiu sistema líder em produção
Líder isolado das exportações globais de frango, com 37% de participação e vendas para 154 países, o Brasil conta com condições naturais favoráveis para seguir aumentando a produção, na medida em que novos mercados se abrem. Sistema integrado de produção entre indústria e avicultores, abundância de água e de grãos, e energia elétrica de fontes limpas mantêm a competividade elevada.
“O frango realmente tem essa dinâmica de economia de escala muito forte. A gente consegue ofertar tanto para o mercado internacional como para o mercado doméstico. Não temos o problema de exportar muito e prejudicar o consumidor brasileiro.
Os compradores vão compondo as compras deles conforme a questão econômica e a disponibilidade dos produtos. Se o brasileiro não come pé, não come pescoço, vai tudo para fora”, observa Thiago Bernardino de Carvalho, pesquisador do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea Esalq/USP).
Mercados gigantes ainda não se abriram ao frango brasileiro
De todo o frango exportado pelo Brasil, entre 40% e 50% sai com certificação de abate Halal, para atender exigências religiosas de países muçulmanos. Para essa clientela, a liderança é do frango inteiro grill, ou galeto, de até 900 gramas. Em seguida vem o frango desossado, ou shawarma, destinado à culinária típica do Oriente.
Walid Youssef El Orra, diretor-executivo da certificadora CDIAL Halal, vê espaço para o país seguir ampliando as exportações. “Somente na Indonésia, são quase 250 milhões de consumidores halal, mas o frango ainda é protegido ali. Essas portas começam a se abrir pouco a pouco”, assegura.
Além da Indonésia, Índia, Paquistão e Nigéria são outros exemplos de mercados com populações gigantes, mas que ainda impõem tarifas proibitivas. Para a Índia, por exemplo, os cortes de frango recebem taxação de 100%, e, o frango inteiro, 30%. Para o México, a tarifa era de 70%, mas foi zerada no final de 2023 pelo presidente López Obrador, dentro do programa de combate à inflação dos alimentos.
Nenhum cliente leva mais de 15% do frango
Assim, algumas janelas se abrem e outras se fecham, conforme as oscilações do protecionismo local. No frango, não existe excesso de dependência das compras de um único cliente. A China lidera os pedidos, com 13,61% de participação, seguida pelos Emirados Árabes Unidos, com 8,79%, Japão, 8,65% e Arábia Saudita, 7,52%.
Em 2050, segundo a ONU, o planeta terá mais 2 bilhões de bocas para alimentar. Uma demanda extra garantida, pontua Santin, da ABPA, para “além dos que hoje estão com fome ou comem menos do que a média mundial, mas que, com agregação de renda, poderão consumir mais”.
O esforço da indústria tem sido convencer os países que o frango brasileiro não precisa desalojar a produção local, mas trabalhar de forma a complementá-la. Assim, se um país decide ser autossuficiente em peito de frango, precisará produzir 350 mil toneladas de frango inteiro para obter 100 mil toneladas de peito. Sobram todas as outras partes, como coxas, asas, pés e restante da carcaça. Se tentar exportar, baterá de frente com o frango brasileiro e o americano, que têm um custo de produção bem menor.
Distribuição pulverizada garante giro rápido dos cortes de frango
“Isso poderia desequilibrar o mercado local. Por isso é bom a complementaridade. Essa é a equação que tem feito o sucesso do Brasil, por que o Brasil consegue vender uma coxa desossada para o Japão, uma coxa inteira para a África, asa e pé para a China, peito para a Europa e para o México. Você consegue fazer uma produção que complementa a dos outros e não é simplesmente a sobra do Brasil”, enfatiza Santin.
Ao serem exportados, os cortes menos nobres, como pé, pescoço e miúdos, acabam tendo um papel de alavancagem da produção brasileira, concorda Bernardino, do Cepea. “Isso dá um giro para a indústria, que não fica com esse produto armazenado. Esse cenário traz uma dinâmica interessantíssima para alguns mercados que precisam desse alimento barato, como o Oriente Médio, a Ásia como um todo”, sublinha.
Dados da ABPA apontam que o processo de transformar água, milho e soja em frango agrega cinco vezes mais valor do que a venda dos grãos in natura. Um outro salto no faturamento poderia ocorrer aumentando a industrialização do frango, na forma de nuggets, salsichas e hambúrgueres. Hoje, esses produtos representam apenas 3% dos volumes exportados. Dar esse novo passo, contudo, esbarra no custo Brasil.
Custo Brasil dificulta exportação de subprodutos processados de frango
“O nosso custo de polipropileno é muito caro, o nosso custo de energia é caro, nosso sistema tributário é maluco, e temos a defasagem de portos”, observa Santin, da ABPA. Nesse contexto, diz ele, o importador faz as contas e vê que o preço fica parecido com o do frango industrializado localmente, mas sem ter que esperar 45 dias para entrega.
Grandes players da produção de frango no Brasil, como a BRF e a JBS, já mantêm fábricas no Oriente Médio onde transformam o frango brasileiro em cortes empanados, marinados e hambúrgueres.
Para Walid El Orra, da CDIAL Halal, parte dessa agregação de valor tem potencial de ocorrer dentro do próprio Brasil: “Esse frango que já vai temperado, pronto para ser trabalhado, ele tem um valor melhor. É entender a cultura culinária dos países e começar a diversificar aqui em território brasileiro. Ninguém quer ter essa dor de cabeça, porque gera um custo. Mas para países de grande demanda, acredito que vale a pena. Se 50% vai para a China, por exemplo, porque não pensar em como diversificar e agregar valor com base na culinária da china?”, sugere.
Fonte: gazetadopovo