Até poucos dias atrás, os operadores de algumas das principais cadeias do agronegócio brasileiro, como soja, carne, madeira e café, estavam sobressaltados com a iminência de implementação do regulamento antidesmatamento da União Europeia (EUDR). Os europeus ameaçavam mandar de volta cargas de produtos sem certificação de áreas livres de desmatamento após 2020, legal ou ilegal. As cadeias potencialmente impactadas representam 75% dos US$ 25 bilhões exportados anualmente pelo agro nacional para o velho continente.
Atendendo a apelos de parceiros comerciais, da África às Américas, e protestos dentro do próprio continente, a Comissão Europeia decidiu propor o adiamento do EUDR por um ano. Mas Bruxelas procurou enfatizar que “as ferramentas estão prontas” e o adiamento “não coloca em questão de forma alguma os objetivos ou a substância da lei”.
Não é a primeira vez que medidas unilaterais, sob justificativa de sustentabilidade ou proteção ambiental, são aplicadas pelo bloco europeu às exportações brasileiras. Uma primeira onda ocorreu no final dos anos 1990. À época, a Europa anunciou que só compraria soja convencional, não transgênica, para uso na indústria, alimentação humana e animal.
Primeira onda de exigências europeias ao agro brasileiro vetava transgênicos
No Brasil, o levante ideológico contra a transgenia levou o então governador do Paraná, Roberto Requião, a proibir o embarque de grãos geneticamente modificados pelo Porto de Paranaguá. Foi criada até uma Associação Brasileira dos Produtores de Grãos Não-Geneticamente Modificados (Abrange) para aproveitar a oportunidade.
O tempo se encarregou de mostrar que aquela primeira onda de exigências europeias estava fadada a virar um negócio de nicho. Após a pandemia e a guerra da Ucrânia, os prêmios pagos pela Europa pela soja convencional praticamente desapareceram. O Brasil perdeu espaço para outros fornecedores, como Rússia e Índia, que aumentaram a disponibilidade de farelo convencional.
A nova realidade fez com que a associação dos produtores de grãos não-transgênicos, que resistiu por quase duas décadas, acabasse extinta. Atualmente, a área cultivada com soja convencional no Brasil é de menos de 2% da área total dedicada à oleaginosa. Do que se exporta, a maior parte não vai para a Europa, mas para o Japão, que oferece preços compensadores.
Segunda onda de exigências europeias envolvia soja certificada
“Todo produtor sabe plantar soja convencional, eles aprenderam com os pais e avós a plantar sem a tecnologia do glifosato. Só que a Europa não pagou mais pela soja convencional e, no ano passado, levou 98% de soja transgênica. Não tem mais soja não transgênica no Brasil, nem nos Estados Unidos, nem na Argentina e no Paraguai”, aponta Bernardo Pires, diretor de sustentabilidade da Associação Brasileira das Indústrias de Óleo Vegetal (Abiove).
Em 2009 veio a “segunda onda” de exigências ao agro nacional. Dessa vez, o anúncio era de que a partir de 2015 somente poderia entrar no mercado europeu soja certificada que comprovasse boas práticas de produção e uma série de requisitos legais, ambientais e sociais.
Não seriam tolerados grãos oriundos de áreas desmatadas após 2008 (conforme pacto conhecido como Moratória da Soja). Na ponta de lança da iniciativa estavam o grupo brasileiro Amaggi, a Unilever e a ONG WWF, que em 2006 haviam fundado a Mesa Redonda de Soja Responsável (RTRS, da sigla em inglês). Apesar de ter sede na Suíça e se projetar como uma iniciativa global, até hoje mais de 80% das certificações da RTRS envolvem apenas a soja brasileira.
Sem certificação, mas com moratória
De novo, o prêmio pago pelos europeus, de US$ 3 a US$ 4 por tonelada, não tem sido suficiente para cobrir os custos e a complexidade dos rígidos protocolos de certificação. Assim, no ano passado 95% da soja embarcada para o velho continente não teve nenhuma certificação.
Isso não quer dizer, contudo, que toda e qualquer soja atravessou o Mar Mediterrâneo. As principais tradings do país, que controlam 90% das exportações, controlam seus fornecedores e não compram nem despacham para a Europa grãos produzidos em áreas atingidas pela Moratória da Soja.
O pacto, que enfrenta forte oposição dos produtores rurais, boicota soja de áreas desmatadas após 2008. Mesmo que dentro dos parâmetros de conversão de uso do solo permitidos pelo Código Florestal. Nem mesmo o novo regulamento europeu, o EUDR, pretende exigir tanto. Pelo EUDR, não serão aceitos embarques de áreas desmatadas após 2020.
Certificação esbarra nos custos
Esforçar-se e gastar dinheiro para atender às certificações visando o mercado europeu, como regra geral, não vale a pena para o médio produtor brasileiro. “Se pagar US$ 30 a US$ 40 por tonelada para certificar a soja, vai fazer fila de produtor para certificar. Se pagar US$ 2 a US$ 3 por tonelada, ele sai correndo. Ter que investir para melhorar todo o processo de construções rurais e até a parte de gerenciamento das boas práticas para receber US$ 30 mil a cada mil hectares? A conta não fecha”, assegura Pires, da Abiove.
Há cinco anos os europeus ensaiaram uma terceira onda de restrições à produção brasileira de grãos, sugerindo que a Moratória da Soja, hoje focada nos estados da Amazônia Legal, fosse expandida para o Cerrado. Passaria a englobar mais cem mil fazendas, metade de toda área de soja no país, que chega a 46 milhões de hectares.
Bernardo Pires relata a resposta brasileira: “Se vocês querem desmatamento zero no Cerrado, minimamente vão ter que pagar o custo de arrendamento para todo produtor que estiver no Cerrado. Se estiverem dispostos a pagar US$ 300 a US$ 400 por ano por excedente de Reserva Legal, ou seja, para o produtor não abrir e não plantar, podemos até pensar em fazer algo semelhante a isso”. A conversa terminou por aí, sublinha Pires, porque os europeus não se dispuseram a pagar nada pela preservação adicional.
Para Aprosoja, lobby da Europa tenta encarecer produto do agro brasileiro
Para analistas do setor agropecuário ouvidos pela Gazeta do Povo, o principal propósito europeu com a “terceira onda” de exigências, por meio do EUDR, não seria preservacionista, mas comercial. Fabrício Rosa, diretor-executivo da Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja), lembra que a soja ocupa apenas 5% do território brasileiro e menos de 2% da Amazônia.
“A única justificativa para isso (EUDR) é criarem uma barreira para o crescimento e expansão da soja no Brasil e o seu encarecimento. Quando exige esse tipo de segregação, você impõe um custo pesadíssimo à logística brasileira, que vai aumentar o preço da soja. Eles vão obrigar que essa soja seja mais cara, nivelando com o que produzem lá, especialmente os franceses. Encarecem o custo da soja brasileira para o mercado europeu, criando um protecionismo para os seus produtores”, sublinha Rosa.
Faz parte do marketing europeu apresentar o EUDR em uma embalagem sustentável e “amiga do planeta”. O apoio de ONGs e ambientalistas não encobre, contudo, interesses financeiros e comerciais subjacentes.
Lei deveria se chamar “antiflorestamento”, diz pesquisador do Ipea
“Não podemos nos iludir com a ideia bonita do nome ‘lei antidesmatamento’. O agronegócio é sustentável por natureza. Na verdade, essa lei europeia é ‘antiflorestamento’. Café, cacau, açaí, etc. são carbono na veia. Uma coisa é plantar mato e árvore. Outra é queimar combustível fóssil e fazer uso de termelétricas”, argumenta José Eustáquio Vieira Filho, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério do Planejamento.
“Se as mudanças climáticas forem verdade”, sublinha Eustáquio, “o agronegócio é solução do problema, e não o contrário. O que realmente estimula o desmatamento é o subsídio. Nesse campo, EUA e Europa são líderes, pois desmataram tudo via pagamento de transferência direta aos seus produtores”.
Ainda que as pesquisas apontem que grande parte dos europeus deseja consumir produtos ligados à preservação ambiental, também é fato que poucos estão dispostos a pagar mais por isso. A Europa pretende dividir a conta de produtos sustentáveis com os fornecedores à marra. Sintoma disso foi a própria unilateralidade do regulamento EUDR, construído à revelia dos parceiros comerciais e dos organismos internacionais de mediação.
Europa é cliente “eternamente insatisfeito”
Para Lygia Pimentel, economista da consultoria Agrifatto, a lei antidesmatamento europeia “tem pouca disposição para chegar a um lugar comum”. “O objetivo é reduzir o comércio mesmo, tornando o produto brasileiro menos competitivo”, sublinha.
Trata-se de um cliente eternamente insatisfeito, mesmo que se ofereçam as leis preservacionistas mais rigorosas do planeta. “Ninguém faz o que o Brasil faz, mas ao mesmo tempo ninguém está contente conosco. Isso indica, também, que as coisas não irão parar por aí”, avalia Lygia.
Para todos os efeitos, a União Europeia declara que houve apenas adiamento do início das regras do EUDR, mas sua essência está mantida. O tempo extra servirá para adaptação dos exportadores. Ao mesmo tempo, permitirá a Bruxelas reavaliar o impacto das regras sobre os preços dos alimentos dentro do bloco.
Ao restringir as origens de suas importações agrícolas, e ao burocratizar e onerar o processo, a UE arrisca enfrentar uma alta nos preços locais, com impacto na inflação e na economia. “Se a situação apertar ainda mais e a compra no supermercado ficar mais cara, será que haverá tanto apoio da população como um todo ao desmatamento zero?”, questiona Daniele Siqueira, analista da AgRural.
Risco de se insistir em um jogo perde-perde entre a Europa e o agro brasileiro
O desafio para europeus e brasileiros é tentar sair de um jogo perde-perde, que não interessa a ninguém. A Europa não conseguirá trocar facilmente o Brasil por outros fornecedores. O agro brasileiro, em contrapartida, não pode se dar ao luxo de esnobar o cliente que exige características específicas dos produtos.
Ainda não está claro se essa terceira onda de exigências europeias terá o mesmo destino das anteriores, que pretendiam ser regra geral, mas viraram negócio de nicho. “Se não funcionar bem para um dos lados, ou para ambos, o mais provável é que ocorram adaptações ditadas pelo mercado, que acaba sendo soberano em relação às regras impostas pelos governos”, prevê Daniele Siqueira, da AgRural.
Por ora, o adiamento do EUDR evitou um custo extra de 2,25 bilhões de euros aos produtos de soja e derivados no mercado europeu em 2025, segundo estimativas da Federação Europeia dos Fabricantes de Ração (FEFAC). A Europa consome 30 milhões de toneladas de soja por ano. Mais de metade precisa ser importada e, desse montante, 59% são fornecidos pelo Brasil.
Fonte: gazetadopovo