Enquanto partidos, políticos, imprensa e eleitores discutiam, na manhã da última segunda-feira (7), quem afinal passaria a governar as mais de 5,5 mil cidades do país, após o primeiro turno da eleição municipal, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizava um seminário sobre os chamados “litígios estruturais”. Trata-se de um tipo de processo que ganhou relevância na Corte nos últimos anos e que já é visto, no meio acadêmico e jurídico, como uma forma de o Judiciário influenciar fortemente, em assuntos específicos, a execução de políticas públicas, tarefa teoricamente conferida ao Poder Executivo.
Diz respeito a um processo em que o Judiciário é demandado para resolver um problema amplo e complexo, que afeta a coletividade – em geral, uma minoria, um grupo social ou determinada população local – que sofreu violação de seus direitos fundamentais.
O dano pode ter sido causado por múltiplos atores: o próprio poder público, empresas ou outros grupos sociais. Para fazer justiça, não bastaria uma reparação pontual, mas ajustar políticas públicas – ou determinar que elas sejam criadas pelos demais Poderes – para materializar direitos que acabaram relegados em relação a determinado grupo. Em muitos casos, apesar desse direito estar garantido pela Constituição, há omissão do Estado em assegurá-los.
O primeiro caso de litígio estrutural no STF começou a ser julgado em 2015, quando os ministros reconheceram haver um “estado de coisas inconstitucional” nos presídios do país, marcados historicamente por péssimas condições de convívio, segurança e higiene dos detentos. Na época, a Corte mandou o governo federal liberar recursos para os estados construírem mais presídios e determinou que os tribunais acelerassem audiências de custódia – nas quais um juiz decide, logo após a prisão em flagrante ou provisória, se a pessoa precisa ficar detida ou pode responder em liberdade.
Mas, em razão do tamanho do problema, um litígio estrutural pode durar por muitos anos. Isso porque comporta várias decisões ao longo do tempo, no qual as medidas determinadas são também monitoradas – pelo próprio Judiciário ou por órgãos a ele ligados, como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) – para avaliar se aquela situação problemática está sendo resolvida.
Para isso, muitas vezes o STF manda outros poderes ou órgãos públicos elaborarem planos, fiscalizando o cumprimento de suas etapas. É comum que entidades da sociedade civil que demandaram a solução e outras interessadas ou envolvidas na questão – ONGs, institutos de pesquisa, associações de ativistas, etc. – acompanhem e avaliem essas medidas dentro do processo, participando de audiências com o ministro para relatar percalços.
O caso mais recente de litígio estrutural envolve os incêndios na Amazônia e no Pantanal. A ação sobre o problema foi apresentada em 2020 pelo partido Rede para forçar o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) a aplicar mais recursos, na época voltados para o combate à pandemia, na preservação dos biomas. Até hoje a ação tramita, e agora tem sido usada pelo relator, Flávio Dino, para coordenar o trabalho dos governos estaduais e de órgãos federais no combate às queimadas.
Neste ano, o ministro Flávio Dino, que se tornou o relator no STF, vem requisitando informações atualizadas dos recursos, de pessoal e de estrutura para combater os incêndios, e exige dos órgãos envolvidos planos de prevenção e combate. Ele chegou a mandar o governo federal abrir crédito extraordinário, fora do arcabouço fiscal, para custear as ações. E agora trabalha para regularizar a propriedade de terras onde queimadas muitas vezes são provocadas para ocupação ilegal.
“Em processo de índole estrutural, como o presente, a técnica para execução de sentenças e acórdãos é aquela denominada de decisões em cascata: ‘à decisão principal seguem-se inúmeras outras que têm por objetivo resolver problemas decorrentes da efetivação das decisões anteriores de modo a permitir a efetiva concretização do resultado visado pela decisão principal’”, escreveu Dino numa de suas recentes decisões no processo das queimadas, citando estudiosos do assunto (Fredie Didier Jr, Hermes Zaneti Jr e Rafael Oliveira).
Outro caso notável de processo estrutural em andamento diz respeito às emendas parlamentares. Em 2022, o STF proibiu a prática que ficou conhecida como “orçamento secreto”, na qual o Congresso turbinava as emendas de relator – rubrica da Lei Orçamentária na qual o deputado ou senador que fecha o texto inclui verbas para corrigir erros de alocação – para esconder indicações de parlamentares influentes, com recursos maiores, mas sem clareza quanto aos padrinhos e beneficiários das verbas. Não adiantou: depois, o Legislativo passou a colocar mais recursos nas emendas de comissão, com o mesmo propósito: privilegiar os políticos mais poderosos com verbas mais abundantes, mas sem transparência.
Neste ano, após assumir o processo, Dino passou a exigir, tanto do Executivo quanto do Legislativo, informações mais completas e públicas sobre a origem das indicações e o destino dos recursos, inclusive com a montagem de uma plataforma centralizada para acompanhar as despesas. Tudo com o alegado objetivo de fazer cumprir princípios constitucionais da publicidade e da eficiência do gasto público, de modo a superar as manobras do Congresso.
De forma reflexa, Dino acabou ajudando o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a retomar o controle na liberação dos recursos, tradicional arma do Executivo para negociar apoio político no Congresso.
Numa das decisões, Dino também explicou como funcionam os processos estruturais, caracterizados, segundo ele, “pela constatação de um estado de desconformidade; pela busca da remoção deste estado anômalo por meio de decisões de implementação escalonada; pela adoção de procedimentos flexíveis e pela consensualidade, inclusive com a adaptação do processos”. Logo em seguida, rebateu algumas críticas, que já vêm sendo levantadas entre estudiosos do tema, sobre o poder alcançado pelo STF nesse tipo de procedimento.
“Não há que falar em violação à separação dos poderes ou em indesejado ‘ativismo judicial’, mas em legítimo controle jurisdicional baseado numa ‘releitura do diálogo entre os atores envolvidos e impactados pela decisão’”, escreveu, novamente com apoio em pesquisadores do tema (Sérgio Cruz Arenhart e Gustavo Osna).
Dino registrou que, no caso das emendas, havia bom andamento nas tratativas junto ao Executivo para dar mais transparência, embora haja resistência do Legislativo. Destacou, de qualquer modo, que não havia data para o fim do processo, “que se alongará pelo tempo necessário à adequação das práticas orçamentárias aos ditames da Constituição Federal”.
No ano passado, o STF criou um departamento interno, composto por três doutores em direito e um PhD em economia, dedicado a apoiar os ministros na condução de litígios estruturais. De outubro de 2023 até o momento, o Núcleo de Processos Estruturais Complexos (Nupec) deu suporte a 29 decisões complexas, monitorou 11 processos desse tipo e trabalhou em 50 audiências e reuniões técnicas com órgãos envolvidos nesses casos. No mês passado, a Corte lançou uma edição da revista Suprema, voltada para estudos constitucionais, dedicada ao tema.
Ministros e estudiosos discutem limites do Judiciário nos litígios estruturais
No evento sobre o tema realizado na última segunda-feira (7), no STF, ministros e estudiosos do tema discutiram a natureza desse tipo de processo e os limites de atuação do Judiciário.
O presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, abriu o seminário repetindo que a Constituição de 1988 não apenas organizou a divisão do poder público e declarou os direitos fundamentais, mas regulou questões tributárias, educacionais, ambientais, econômicas, etc. Por consequência, deu ao STF um papel mais abrangente, de fazer cumprir regras que, em outros países, foram inscritas em leis ordinárias e são mais sujeitas a mudanças pelo Legislativo.
Ele explicou então o que, em sua visão, diferencia um processo comum na Justiça de um estrutural. Enquanto o primeiro busca uma sentença final para satisfazer, pontualmente, um direito negado a uma parte, no segundo, o Judiciário diagnostica uma “situação anômala, incompatível com a Constituição, normalmente de violação massiva de direitos fundamentais” e depois determina que outros poderes ou órgãos elaborem planos para mitigar o problema; e, por fim, monitora o cumprimento das medidas planejadas por esses outros entes.
O ministro citou como exemplos recentes o processo dos presídios, onde foram determinados planos federais e estaduais para reduzir a superlotação; a ação na qual o STF limitou operações policiais em favelas no Rio de Janeiro, visando conter a letalidade da polícia – uma das medidas mais impactantes foi a obrigatoriedade de câmeras nas fardas; e outro processo de proteção de terras indígenas e expulsão de invasores, sob relatoria de Barroso.
Depois, o ministro destacou que processos estruturais envolvem diálogo entre as instituições, de modo que o Judiciário também reconheça suas limitações para resolver um problema complexo e busque assim a cooperação com órgãos do Executivo e do Legislativo para lidar com ele.
“Acho que essa é uma novidade e um caminho possível para o Judiciário intervir positivamente na realização dos objetivos constitucionais, sem, todavia, presumir demais de si mesmo, compartilhando responsabilidades com os outros poderes”, concluiu.
No seminário, o presidente do Superior Tribunal de Justiça, Herman Benjamin, explicou que, em processos estruturais, o Judiciário “está quebrando aquela percepção tradicional que os litígios decorrem de um ato isolado, praticado por um infrator isolado, contra uma vítima isolada”.
“O processo é estrutural porque ele quer pegar a norma e aplicar a norma não para resolver um litígio individual, mas para resolver a problemática”, afirmou Benjamin, após destacar que a decisão tem caráter de “transformação da realidade”.
Ele destacou que os processos estruturais mais difíceis para o Judiciário lidam com situações em que haja omissão dos órgãos responsáveis para resolver um problema complexo para o qual já exista lei ou política pública para remediá-lo. “A inércia se justifica de todas as formas e é dificílimo para o juiz trabalhar com os mecanismos de defesa da inércia e apontar, individualmente, quem se omitiu”.
Herman Benjamin rebateu a crítica de que os juízes estariam extrapolando suas funções, ao determinarem ações por parte dos demais poderes. “No Brasil sabemos que não fomos eleitos pelo povo, mas a soberania que legitima a função jurisdicional vem da Constituição. Então é uma legitimidade originária por quem foi eleito para fazer a Constituição. Então, não se pode simplesmente dizer que nós juízes não temos legitimidade para tratar de questões que estão constitucionalizadas ou legalizadas”, disse.
Ele disse ainda que é preciso cuidado para evitar a “banalização” desse tipo de processo, e também para não criar “expectativas irrealistas que nós juízes conseguiremos resolver os problemas do Brasil”. “Podemos mitigar as violações mais graves da Constituição e das leis.”
O presidente do STJ concluiu afirmando que a função do juiz, nesses processos, é “coordenar” o que precisa ser feito por outros órgãos. “Evidentemente, tem o poder de mando, a palavra final, mas é uma tarefa mais ampla, de abraçar o litígio maior do que aquele que está previsto formalmente na petição inicial, mas abraçar a coletividade de vítimas e também de agentes.”
No seminário, disponível no canal do STF no YouTube, acadêmicos brasileiros e estrangeiros relataram os desafios dos litígios estruturais, desde as dificuldades para monitorar o cumprimento das decisões à forma e amplitude de participação social dos grupos afetados. Não houve participação de autoridades do Legislativo e do Executivo nos painéis.
Fonte: gazetadopovo