O Supremo Tribunal Federal (STF) deu prioridade aos interesses do Fisco ao permitir o compartilhamento de dados de usuários do Pix e meios eletrônicos para fiscalizar o recolhimento do ICMS, principal tributo estadual. A avaliação é de especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo.
Em votação no plenário virtual finalizada na semana passada, a maioria dos ministros julgou constitucionais os dispositivos de um convênio do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz) que obriga os bancos a informarem os dados de todas as transações digitais dos clientes aos Fiscos estaduais.
O objetivo do Confaz, composto pelos secretários de Fazenda dos estados e do Distrito Federal e presidido pelo Ministério da Fazenda, é combater a sonegação.
A ação julgada pelo STF foi ajuizada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif), entidade sindical que reúne federações e sindicatos de classe representativas das instituições financeiras. Para a Consif, a regra imposta pelo Confaz viola a garantia constitucional de sigilo bancário.
A questão dividiu o colegiado. Por seis votos a cinco, prevaleceu o voto da relatora, ministra Carmem Lúcia, que considerou a medida necessária para o Estado exercer “de forma exclusiva suas competências fiscais”.
A divergência, aberta pelo ministro Gilmar Mendes, foi seguida pelos ministros Nunes Marques, Cristiano Zanin, André Mendonça e Luís Roberto Barroso, presidente do STF.
Os ministros contrários argumentaram que a medida pode violar o direito fundamental ao sigilo bancário, garantido na Constituição, e que o fornecimento de informações bancárias de forma irrestrita pode permitir “invasão desproporcional” à privacidade e abusos por parte do Fisco.
O Pix foi lançado no fim de 2020. Graças à praticidade, rapidez e gratuitade das transações para pessoas físicas, ganhou popularidade rapidamente. Quatro anos depois, é usado por boa parte da população. Na última sexta-feira (6) – coincidentemente, o mesmo dia em que o STF concluiu o julgamento – o volume de transações bateu novo recorde: foram 227,4 milhões em apenas 24 horas.
Ao autorizar repasse de dados do Pix e cartões, STF deu prioridade ao Fisco
“Ao decidir pela constitucionalidade da medida, o STF buscou priorizar o interesse público na eficácia da fiscalização tributária, em especial no combate à evasão fiscal, aspectos que afetam diretamente a arrecadação e, consequentemente, o equilíbrio das contas públicas”, afirma Leonardo Roesler, tributarista do RMS Advogados.
Em contrapartida, segundo ele, a Corte abriu um flanco de questionamentos sobre a propriedade da medida, num momento em que “o risco de abusos pela administração pública não pode ser subestimado”.
“Estamos em um cenário onde as garantias de proteção de dados pessoais vêm sendo cada vez mais debatidas no âmbito jurídico”, afirma Roesler. “O potencial desequilíbrio entre o poder fiscalizador do Estado e os direitos à privacidade e à proteção de dados sensíveis é uma preocupação legítima e merecia maior reflexão por parte do tribunal.”
Felippe G. Bernardes, do Grupo Brugnara, acredita que o risco é que a decisão do STF de liberar dados de transações de Pix e cartões seja considerada “invasiva demais”, contrapondo contribuintes e entidades contra o compartilhamento indiscriminado de dados.
Compartilhamento de dados bancários deve voltar a ser discutido na Justiça
Os tributaristas acreditam que a decisão do STF de permitir o compartilhamento de dados de operações eletrônicas será judicializada.
“Apesar do entendimento pela constitucionalidade, há argumentos jurídicos sólidos e embasados nos direitos fundamentais de intimidade e privacidade que podem fundamentar discussões sobre os limites da atuação fiscal, abrindo margem para novos debates ou até mesmo eventuais reanálises da questão”, diz Roesler.
Para Gabriel Santana Vieira, da GSV Advocacia, entre os principais argumentos para a contestação está a intimidade e a privacidade dos cidadãos.
“A transferência de dados financeiros às autoridades fiscais, ainda que limitada ao contexto de fiscalização do ICMS, pode ser interpretada como uma violação ao direito de proteção de dados sensíveis”, diz.
Além disso, segundo ele, vai na contramão da recente promulgação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que prevê tratamento ainda mais criterioso para dados privados.
Bernardes destaca a possibilidade de haver questionamentos sobre a falta de autorização judicial individualizada. “Trata-se de uma exigência para quebrar sigilo bancário em alguns contextos, o que traz incertezas sobre a legalidade plena da decisão”, diz.
Acesso do Fisco a dados do Pix e outros gera temor de fiscalização invasiva
Outras questões relacionadas à decisão do STF também pairam no ar. A falta de critérios rigorosos para delimitar o tipo de transação que será compartilhada pode gerar fiscalização excessiva. Por exemplo, no caso de transações pessoais, como transferências feitas por Pix entre amigos, familiares ou cônjuges.
À primeira vista, tais operações não têm interesse ao Fisco dos estados, já que não estão relacionadas ao consumo de bens e serviços. Na prática, no entanto, as dúvidas permanecem e dão margem a questionamentos.
“No âmbito tributário, qualquer transação financeira pode ser considerada relevante para a Receita, pois o cruzamento de dados é uma das ferramentas mais eficazes para identificar divergências entre a renda declarada e a movimentação financeira real”, afirma Bernardes. “O Estado poderia argumentar que até essas pequenas transações ajudam a construir um perfil mais preciso do contribuinte, mas isso pode ser visto como um excesso de controle.”
Vieira acredita que os dados facilitam ao Fisco detectar incongruência de valores declarados.
“O acesso a dados de transações financeiras eletrônicas, como Pix e cartão, permite um cruzamento mais efetivo entre as informações”, diz. “Contribuintes que se sintam prejudicados poderão questionar o uso dessas informações sob a ótica da razoabilidade e da proteção ao sigilo.”
Luana Torques Cavalli, do Correia e Castro Advogados, prevê que deverão ser apresentados embargos de declaração, uma espécie de recurso com a finalidade de esclarecer contradição ou omissão em decisões colegiadas.
Em regra, esse recurso não tem o poder de alterar a essência da decisão e serve apenas para sanar os pontos oscuros ou que não foram abordados.
“Mesmo assim, as pessoas ou entidades que se sentirem prejudicadas deverão entrar com ações próprias contra a decisão”, diz Cavalli.
Autorização de repasse de dados do Pix deveria ser debatida no plenário físico do STF
Para Roesler, a discussão deveria ter ocorrido no plenário físico do STF, para permitir um confronto de posições.
“A ausência de um debate mais aprofundado sobre os limites e salvaguardas necessárias para evitar o uso indiscriminado desses dados bancários gera inquietação”, diz.
Na avalição de Vieira, a votação apertada expõe a tensão institucional. “A divisão entre os ministros destaca a complexidade do equilíbrio entre a necessidade de uma fiscalização eficiente e a proteção dos direitos dos contribuintes”, afirma.
A tensão foi percebida pelo STF. Quatro dias após a votação, veio a público na terça-feira (10) afirmar, em nota, que a medida aprovada “configura mera medida administrativa, inerente ao procedimento fiscalizatório”.
De acordo com o STF, as regras do Confaz não “envolvem a quebra de sigilo bancário nem decretam o fim desta obrigação”.
Fonte: gazetadopovo