IGOR GIELOW – A guinada dada por Vladimir Putin para tentar reverter a maré negativa para suas forças na Guerra da Ucrânia não gerou apenas críticas no exterior, devido ao anúncio da anexação de quatro regiões ocupadas no vizinho e à ameaça de uso de armas nucleares contra o Ocidente.
Há uma grande confusão em curso na própria Rússia, devido à pouca clareza das regras da mobilização parcial determinada por Putin para enfim fornecer um número de soldados adequado às suas pretensões na guerra.
Em algumas cidades há filas em postos do serviço militar, e abundam relatos de pessoas tentando deixar o país. O Kremlin negou o êxodo, mas os resquícios de mídia independente operando na internet russa relataram congestionamentos na fronteira com a Finlândia e uma corrida por passagens aéreas internacionais.
Há um evidente exagero, usual na mídia ocidental crítica da guerra de Putin, mas também há interrogações no ar. “Ninguém sabe direito se vai chegar um policial com uma carta em casa. É bastante angustiante”, afirmou o analista financeiro moscovita Serguei S., 47, que pede para não ser identificado.
O decreto da medida, publicado logo após o pronunciamento do presidente em rede nacional às 9h (3h em Brasília) da quarta (21), é vago, permitindo uma série de regulações posteriores. Até aqui, o que se sabe foi dito pelo ministro da Defesa, Serguei Choigu, à TV estatal russa, e complementado em comunicado nesta quinta (22).
A saber: o objetivo seria convocar até 300 mil reservistas com alguma experiência militar -não apenas o treinamento básico. É um número mágico, já que ninguém sabe quantas pessoas há nessa categoria. Um lugar óbvio para procurar seria o grupo que serviu na intervenção russa na guerra civil da Síria, iniciada em 2015.
Segundo o único dado disponível, de 2015 a 2018 cerca de 63 mil soldados passaram por lá. Mas é um número contestado por especialistas e distante da meta anunciada -fora o fato de que parte dessa gente pode estar na ativa ainda.
Segundo a Defesa, nesta etapa a ideia é chamar soldados e sargentos de até 35 anos, oficiais subalternos de até 50 anos e superiores de até 55. Mulheres podem ser chamadas para trabalhos médicos, mas a pasta diz que essa é uma necessidade mínima.
Essa nota de corte exclui Serguei da primeira chamada, já que ele foi apenas conscrito. Mas seu irmão Ivan, de 35 anos, passou pela maior base russa no exterior, em Gyumri, na Armênia, quando serviu nos anos 2010. “Ele está apavorado e, de fato, pensando seriamente em ir para a Turquia”, afirmou. Segundo o governo, estão isentos de convocação moradores permanentes no exterior, não viajantes.
Ivan, que é tenente da reserva, mora em Moscou também, cidade que já colocou um preço para cada mobilizado que voltar para casa em um caixão. Segundo decreto da prefeitura, a indenização será equivalente a R$ 260 mil por morte, R$ 86 mil por ferimento grave e R$ 43 mil por lesão leve. Cada moscovita convocado ganhará um bônus mensal de R$ 4.300, além do soldo por contrato ainda a definir.
Até aqui, cada região russa pagava um valor diferente para voluntários a lutar na Ucrânia. Em Perm, nos Urais, um contrato pagava R$ 26 mil por mês, uma enormidade. Com a mobilização e a introdução de uma nova lei dando até 15 anos de cadeia para quem fugir dela, isso certamente será revisado para baixo.
Ainda assim, discrepâncias regionais irão ocorrer, como os bônus moscovitas, mas não só isso. Nesta quinta (22), circularam vídeos com policiais organizando filas de recrutamento em Ulan-Ude, capital da distante Buriácia (Sibéria).
A região tem um índice de mortos na guerra, segundo dados oficiais que admitem 6.000 soldados caídos, muito mais alto do que no resto do país, sugerindo que a classe média urbana foi poupada. Segundo ativistas de direitos humanos, o pessoal na fila não era exatamente voluntário.
“O pânico é enorme”, disse ao jornal The Moscow Times Serguei Krivenko, advogado de uma ONG que assiste soldados. Ele diz que os pedidos de aconselhamento subiram de 50 por dias para 14 mil de quarta para cá.
O site independente Mediazona reportou que, em Moscou, jovens presos ao protestar contra a mobilização na noite de quarta receberam papéis de alistamento já nas delegacias. Questionado sobre isso, o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, não negou: “Até onde sei, isso está dentro da lei”.
As manifestações foram, como é usual, reprimidas: cerca de 1.400 pessoas foram detidas em 38 cidades russas, disse a ONG de monitoramento de abusos OVD-Info. É um número bastante menor do que o registrado em outras ocasiões, refletindo tanto a repressão quanto a aprovação até aqui da guerra, que só é rejeitada por 17% segundo o instituto independente Levada.
Há outro ponto a preocupar pessoas como os irmãos Serguei e Ivan. Segundo o jornal Novaia Gazeta, que foi o último impresso independente a circular na Rússia e hoje opera de forma virtual no exílio, o objetivo final do Kremlin é mobilizar não 300 mil, mas 1 milhão de pessoas.
Isso estaria no parágrafo 7º do decreto presidencial, que foi omitido na publicação como confidencial. O governo russo negou a informação, mas também não explicou do que se trata o item. Assim, a porta fica aberta para novas categorias de homens a serem convocados.
O problema central de Putin na sua invasão, avaliam especialistas, foi a falta de recursos humanos. Houve erros táticos primários e questões logísticas, mas ao fim o que pesou mais para Kiev não ter caído na primeira semana da guerra ou para a Ucrânia ter reconquistado a região de Kharkiv neste mês foi insuficiência de tropa.
A mobilização parcial visa remediar isso, após meses de negativa do Kremlin devido à impopularidade óbvia da medida. Mas a pressão interna estava alta, com blogueiros militares que refletem parte do establishment fardado cobrando abertamente Putin por uma linha mais dura.
A Rússia tem 900 mil soldados ativos e 2 milhões de reservistas que deixaram as forças no máximo há cinco anos. Putin quer aumentar o número em 10% a partir de 2023. Pela lei, o cidadão segue na reserva até os 50 anos, o que expande o número possível de convocados para 25 milhões dos 146 milhões de russos, segundo o Ministério da Defesa.
Mas isso ainda não está oficialmente na mesa, até porque não foi declarada guerra contra a Ucrânia. Na Rússia, o que ocorre no vizinho ainda é chamado, sob pena de punição para quem disser algo diferente, de “operação militar especial”.