Desde que assumiu a presidência da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL) tem promovido uma série de alterações no regimento interno da Casa, consolidando um poder sem precedentes na condução dos trabalhos legislativos e das pautas. Essas mudanças, que vão desde a criação de novas comissões até a ampliação dos poderes da Mesa Diretora para punir deputados, têm gerado um ambiente legislativo mais dinâmico, mas também mais centralizado.
Analistas políticos ouvidos pela Gazeta do Povo apontam que tais medidas, embora eficazes para acelerar a tramitação de matérias, podem comprometer a transparência e a representatividade no processo legislativo.
“O protagonismo do presidente da Câmara na República começou a guinar a partir da gestão de Eduardo Cunha. Desde então, alterações regimentais ou atropelos passaram a ser mais notórios”, observa o cientista político Antônio Lucena. “Atualmente, Lira é o homem da vez, com um poder absurdo, e fez alterações significativas no regimento, pontuou o professor da Universidade Católica de Pernambuco.
Freio no “kit obstrução” mudou regras para adiamento de discussões
Uma das mudanças mais significativas no regimento interno promovida na gestão de Arthur Lira foi a restrição ao uso do chamado “kit obstrução”. Uma resolução de 2021 limitou os mecanismos que a oposição utilizava para atrasar ou inviabilizar a tramitação de matérias.
Na ocasião, Lira disse que a mudança iria “qualificar o debate e impedir a banalização da obstrução, mesmo que este seja um instrumento regimental das minorias”. O então líder da minoria na Casa, Marcelo Freixo (PSOL-RJ), atualmentr presidente da Embratur, afirmou à época que as mudanças no Parlamento não podiam ser “casuísticas”, alegando que as correlações de forças mudam com frequência na Casa.
Um dos instrumentos do chamado “kit obstrução” é a votação para retirada de pauta, que costuma ser usado por partidos de oposição para adiar ou inviabilizar uma análise, mesmo quando um projeto tem amplo apoio para aprovação. Com a mudança, quando um projeto tem sua urgência “urgentíssima” aprovada, é colocado para votação na mesma sessão, então, não pode ser apresentado requerimento de retirada de pauta.
Também ficou proibida a apresentação de requerimento de adiamento de discussão em plenário quando já foram emitidos todos os pareceres a determinada matéria.
O texto aprovado em 2021 pelos próprios parlamentares acabou com os requerimentos de adiamento da discussão que pediam o adiamento por duas sessões se o projeto estivesse em regime de urgência, ou por cinco sessões em outro regime de tramitação, concedendo-se automaticamente, por uma única vez, o adiamento por uma sessão a pedido de líderes que representem, no mínimo, 10% do total de deputados.
No ano passado, mesmo com as dificuldades para obstrução de sessões, a oposição conseguiu adiar a votação de temas importantes, num movimento integrado pelo PL, Novo e frentes parlamentares que protestaram contra a interferência do Supremo Tribunal Federal (STF) na análise de temas do legislativo, como o Marco Temporal. Nesse caso, a Corte teve entendimento divergente do Parlamento e derrubou a tese que fixou a data de 5 de outubro de 1988 como limite para demarcação de terras indígenas, numa polêmica que se arrasta até hoje. Uma nova lei sobre o tema foi aprovada e acabou promulgada pelo Congresso em janeiro deste ano.
Ampliação de poderes da Mesa Diretora para punir deputados
Uma resolução recente da Câmara ao regimento interno introduziu a possibilidade de suspensão cautelar do mandato de deputado federal acusado por quebra de decoro. Esse poder, atribuído à Mesa Diretora, liderada pelo presidente da Casa, Arthur Lira, inclui procedimentos mais rigorosos e prazos mais curtos para decisão sobre perda de mandato parlamentar, aumentando o controle sobre a conduta dos deputados e acelerando a resposta a eventuais infrações éticas.
A mudança foi determinada por sugestão do próprio Lira, após as cenas de tumulto presenciadas na sessão do Conselho de Ética que terminou com o arquivamento de representação contra o deputado André Janones (Avante-MG), acusado pela prática de rachadinha [prática que determina aos funcionários a devolução de parte do salário recebido], e que por pouco não terminou em agressão física entre deputados.
No entendimento do professor de Ciências Políticas Antônio Lucena, essa mudança dá ainda mais poder ao presidente da Câmara.
Alteração no regimento criou cinco novas comissões
O regimento interno também foi alterado em 2023 para criar e renomear comissões permanentes da Câmara dos Deputados, adaptando as estruturas da Casa às demandas legislativas e políticas, mas também serviu como artifício para fortalecer a base de apoio do presidente, com novos cargos oferecidos a aliados políticos, como avalia o cientista político Antônio Lucena.
“A redistribuição de comissões foi um artifício utilizado para abarcar a base de apoio [de Lira], dando cargos de comissões, como presidências, aos partidos que apoiaram sua eleição”, destaca Lucena. “Além disso, cabe destacar que, para os parlamentares, as comissões podem ser utilizadas como palanque também, considerando que estamos vivendo a legislatura das mídias sociais”, salienta.
Pelo projeto aprovado foram criadas cinco novas comissões permanentes:
- Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais
- Comissão da Saúde
- Comissão do Trabalho
- Comissão de Desenvolvimento Econômico
- Comissão de Comunicação
Com esse desmembramento, além da migração de atribuições específicas, o nome de outras comissões que já existiam foi alterado, e o total dos colegiados, os quais têm a composição definida de acordo com a proporcionalidade dos membros dos partidos e avaliam propostas legislativas, passou de 25 para 30.
Grupos de trabalho criaram nova dinâmica para tramitação de temas
Os grupos de trabalho, embora não tenham previsão específica no regimento da Câmara, têm sido cada vez mais utilizados na gestão de Arthur Lira na presidência da Casa. Artigo do regimento até menciona a possibilidade de criar grupos para aperfeiçoar a administração ou o processo legislativo, mas, na prática, esses grupos se desvincularam de suas intenções originais e passaram a ser usados para diversas finalidades, sem necessidade de divisão proporcional de partidos, segundo disse reservadamente à Gazeta do Povo um servidor da consultoria legislativa.
“GTs não funcionam democraticamente. Suas composições são negociadas com líderes partidários e o presidente. Produzem o que é determinado”, critica o cientista político Antônio Flavio Testa. Nos bastidores, alguns deputados dizem até, em tom de ironia, que os GTs são criados para “não tomar decisão nenhuma”.
Diferentemente das comissões, onde a proporcionalidade partidária é exigida, os grupos de trabalho (GTs) podem ser formados livremente por Lira, sem amarras regimentais. Isso permite uma maior liberdade na condução dos trabalhos, mas também levanta críticas sobre a falta de representatividade e transparência.
No ano passado, um desses grupos de trabalho aprovou, em menos de um mês, uma minirreforma eleitoral, que foi aprovada na Câmara, mas acabou emperrada no Senado, onde não foi colocada em pauta por decisão do presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, que deu preferência às discussões sobre mudanças no Código Eleitoral. Atualmente, o Projeto de Lei Complementar 112/2021 tramita nas comissões do Senado.
No primeiro semestre, Lira anunciou Grupos de Trabalho para discutir a polêmica em torno da liberdade de expressão, depois da falta de entendimento sobre o PL da Censura, que não conseguiu apoio dos parlamentares para avançar. O GT foi instalado no início de junho, e até o fim do semestre legislativo não realizou nenhuma reunião.
Além disso, a regulamentação da reforma tributária também ficou a cargo de dois grupos de trabalho, que se debruçaram sobre os novos impostos aprovados, e que, em regime de urgência, foi aprovada rapidamente pelo Plenário na última semana de votações antes do recesso parlamentar de julho.
Requerimentos de urgência: exceção vem se tornando regra
Os requerimentos de urgência, previstos no regimento desde 1989, ganharam destaque na gestão de Lira devido ao ritmo acelerado com que matérias urgentes têm sido colocadas em plenário. A cultura de aprovações rápidas para temas considerados prioritários tem prevalecido, muitas vezes dificultando a articulação de entidades da sociedade civil, já que elas não têm tempo hábil para reagir às pautas divulgadas em cima da hora.
“Os regimes de urgência iniciaram na gestão Rodrigo Maia de forma oportuna através da pandemia”, comenta o professor Antônio Lucena. “Depois disso, uma chuva de “urgências” passaram a constar nas ordens do dia, inicialmente com propostas relevantes para atender questões de calamidade pública, mas depois uma série de projetos estranhos”, destaca.
Muitos parlamentares reclamam que o uso excessivo das chamadas urgências tem dificultado o debate, e muitas vezes projetos polêmicos acabam aprovados sem a devida discussão ou até mesmo sem o conhecimento dos parlamentares.
Mudanças no regimento concentram cada vez mais poder nas mãos do presidente da Câmara
As mudanças implementadas por Arthur Lira no regimento interno da Câmara dos Deputados refletem um esforço para aumentar a eficiência legislativa e centralizar o poder de decisão.
Na votação do texto base da reforma tributária, em julho do ano passado, assim como na recente aprovação da regulamentação, partidos de oposição foram os principais críticos da medida, “puxados” ao plenário por decisão de Arthur Lira e do colégio de líderes, para acelerar a aprovação.
Embora algumas dessas alterações tenham sido bem recebidas por melhorar a celeridade dos trabalhos, elas também levantaram preocupações sobre a transparência, representatividade e o equilíbrio democrático, segundo pontuam analistas políticos.
A constatação é de que o processo legislativo está cada vez mais concentrado nas mãos de Lira. Até fevereiro de 2025, quando encerrar seu segundo mandato à frente da presidência da Câmara, “Lira é o homem da vez, com um poder absurdo”, resume o cientista político Antônio Lucena.
Fonte: gazetadopovo