Brasileiro é apaixonado por carros. Mesmo que essa paixão tenha arrefecido um pouco entre as gerações mais novas, há modelos tão icônicos que transcendem a “bolha”: são reconhecidos de longe e nem precisam do “prenome” da marca para serem identificados. O Uno é um deles.
Carro mais popular da Fiat no Brasil e segundo modelo mais vendido na história do país, atrás apenas do Volkswagen Gol, o Uno acumula mais de 4 milhões de exemplares emplacados em 37 anos. Se considerarmos as unidades para exportação (inclusive para a Itália), chegamos a 4.379.356 exemplares produzidos. O primeiro saiu da fábrica de Betim (MG) há 40 anos.
O último, um Uno Ciao, deixou a linha de montagem da fábrica mineira em dezembro de 2021; foi cedido pela Fiat e ilustra esta reportagem junto do último dos 2 mil Grazie Mille produzidos no final de 2013, quando a primeira e mais icônica geração se despediu. O Grazie Mille também pertence ao acervo da Stellantis, mas o Mille Eletronic 1993 — que completa o trio — é do colecionador Matheus Huttembergue.
Antes de falar sobre esses três exemplares, é preciso voltar no tempo. Em 1980, a Fiat já havia se consolidado no Brasil, mas a família 147, formada por hatch, sedã, perua, furgão e picape, precisava ser atualizada para que objetivos maiores fossem alcançados.
Naquele mesmo ano, a matriz enviou da Itália as primeiras unidades de um novo carro pequeno que estava sendo desenvolvido para a Europa, o Uno. Aqui, vamos incluir um personagem nessa história. O engenheiro Robson Cotta entrou na Fiat em agosto de 1982 como engenheiro de testes. A missão? Deixar o Uno pronto para os brasileiros.
“Tínhamos um grande desafio, que era nos certificar de que estávamos cobrindo todas as reclamações existentes sobre o 147”, diz Cotta. Para isso, o Uno italiano passou por modificações. “Adotamos um comando de câmbio mais moderno, com materiais mais resistentes e funcionais”, conta. Tudo para acabar com os arranhões nos engates. A suspensão da especificação italiana também saiu de cena.
“Foram duas grandes mudanças. Uma na traseira, que recebeu feixe de molas transversal, como o do 147, em vez de eixo de torção. Na dianteira, também adotamos uma suspensão derivada do 147, pois já estava bem testada para as condições nacionais. Esse é um dos segredos da robustez do Uno”, completa.
Mas a posição da suspensão traseira não permitia a alocação do estepe no assoalho. A saída foi colocar o pneu sobressalente no cofre do motor, como no 147. Com isso, o capô do nosso Uno tem bordas que se prolongam pela lateral, inexistentes no europeu.
Mais do que adaptado para os brasileiros, o Uno tinha soluções inovadoras, como o cinzeiro que deslizava no painel. Por fora, o limpador único no para-brisa e as maçanetas embutidas visavam melhorar a aerodinâmica.
O excelente espaço interno, a mecânica confiável — motores de 1.050 cm³ a gasolina, 52 cv de potência e 7,8 kgfm de torque ou de 1.300 cm³ a álcool ou gasolina, 59 cv e 10 kgfm — e o baixo consumo de combustível agradaram e fizeram as vendas da Fiat subir nos anos seguintes, embora ainda em patamar insuficiente para colocar o Uno e a Fiat no topo do ranking nacional. Foi em 1990 que a maré virou de vez para a marca italiana: o governo baixou o Imposto sobre Produto Industrializado (IPI) para carros com motores de até 1.000 cm³.
A Fiat saiu na frente: reduziu o curso dos pistões, adequando a capacidade cúbica do velho Fiasa de 1.050 cm³ para 997 cm³, e lançou o Uno Mille, tradução literal do número mil em italiano. De quebra, inaugurou o segmento dos carros populares no Brasil e iniciou a escalada rumo à liderança. Na sequência, todas as fabricantes lançaram modelos 1.0, mas foi a marca italiana que melhor aproveitou a oportunidade, passando de 67 mil carros vendidos em 1989 para 356 mil em 1994. Superou Chevrolet e Ford e alcançou a vice-liderança do mercado brasileiro, na cola da Volkswagen.
É desse período o Uno Mille branco de Matheus. Produzida em 1993, a versão Electronic traz adesivos da edição Personality, fruto de uma parceria com a 3M. Cuidadoso, o proprietário guarda até hoje o manual de instruções e os gabaritos de aplicação dos adesivos. Hora de uma voltinha no Uno fabricado 31 anos atrás.
A carburação torna a partida em dias frios mais difícil, mas o pequeno hatch é valente e logo está em movimento. Leve (830 kg), nem parece que seu motor entrega apenas 56 cv de potência e 8,2 kgfm de torque.
Conforme o carrinho ganha velocidade, o característico ronco agudo sai do escape. As trocas de marchas nem sempre são precisas, mas a direção leve (sem assistência) torna o passeio agradável. A frugalidade no consumo é uma boa consequência. No teste de Autoesporte em fevereiro de 1994, marcou 11 km/l na cidade e 13,6 km/l na estrada.
A ergonomia é exemplar para um carro dessa idade. Comandos de luzes, limpador e desembaçador estão divididos em dois satélites ao redor do quadro de instrumentos. Esse arranjo seguiu até 1995, quando o Mille passou a usar o mesmo painel das versões mais completas.
Mesmo com a chegada do Palio, em 1996, o Uno seguiu firme como opção barata e robusta. Com o passar dos anos, foram pelo menos três reestilizações, sempre fiéis ao formato característico da carroceria, que rendeu o apelido de botinha ortopédica. Os motores ficaram mais modernos, mas nem tudo pôde ser resolvido.
A exigência de ABS e airbags para 2014 obrigou a Fiat a fazer as contas. E modernizar o velho Uno, então com 30 anos, não valia a pena. A despedida veio com uma série especial, Grazie Mille, outra brincadeira com o idioma italiano: traduzindo ao pé da letra, significa muito obrigado. Foi limitada a 2 mil unidades, vendidas nas cores prata Bari e verde Saquarema.
Digna de uma edição de despedida, traz tudo que um Mille poderia receber em 2013: rádio com Bluetooth, vidros e travas elétricos, direção hidráulica e uma singela plaqueta com o número da unidade. Guardada pela Fiat, a última delas está com 2 mil km. Em relação ao Uno do Matheus, houve evoluções na mecânica.
O motor 1.0 Fiasa deu lugar ao Fire, com seus razoáveis 66 cv e 9,2 kgfm. Mas a posição de dirigir e os pedais próximos uns aos outros seguem lá, bem como o desempenho e o consumo comedidos (eram necessários quase 15 segundos para ir de 0 a 100 km/h, mas, na estrada, o hatch fazia 15,6 km/l com gasolina).
Quando saiu de linha, em 2013, o velho Mille já dividia os showrooms da Fiat com uma nova geração do Uno, lançada em 2010. Na época, Robson Cotta já era gerente de engenharia para carros pequenos. “Tínhamos de ter tudo que havia no Uno antigo, como espaço e comodidade. Em comum, os dois têm a jovialidade do projeto”, conta. Com quinas arredondadas, cores chamativas e opções de personalização, o Uno se atualizou mantendo a herança de confiabilidade.
Estreou os motores Firefly 1.0 e 1.3, teve start-stop, câmbio automatizado e versões esportiva e aventureira, mas perdeu espaço para Mobi e Argo. Com isso, a Fiat começou a reduzir a quantidade de versões do Uno.
A medida mais extrema foi voltar a oferecer o antigo motor 1.0 Fire. E foi com esse propulsor que, no final de 2021, a Fiat encerrou a trajetória do Uno com a edição Ciao. Limitada a 250 unidades, trazia adesivos e uma plaqueta. Na última delas, em vez do número final, a palavra “último”.
Curiosamente, o Fiat Uno nunca foi o carro mais vendido no Brasil. Porém, há tantos outros títulos (como o de tricampeão do Carro do Ano) que esse nem faz falta. Por isso, não há outra forma de encerrar este texto senão com um: Grazie Mille, Ciao!
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Fonte: direitonews