Como a Renault fez fábrica de 50 anos virar giga polo de carros elétricos


Esqueça o charme haussmanniano da capital, Paris, ou a beleza natural da chamada Costa Azul, ao sul do país. O norte da França é praticamente todo composto por cidades industriais, quase sem apelo turístico, contrastadas por enormes igrejas de arquitetura gótica e casas estilo enxaimel, de ar quase alemão. É nesse ambiente que está o complexo Renault Electricity.

O Renault Electricity é um ecossistema formado por três fábricas centrais e outras diversas adjacentes, da própria fabricante francesa ou de fornecedoras. Foi criado em 2021, a partir de um plano de reestruturação da empresa chamado Renaultlution. A ideia era simples: fazer antigos complexos fabris com mais de 50 anos de idade, quase todos em estágio obsolescente, tornarem-se um moderno corredor de gigafábricas dedicadas a veículos elétricos.

Oficialmente, três fábricas pertencem ao Electricity: a de Douai monta veículos elétricos de passeio. É de lá que sai o Mégane E-Tech vendido no Brasil. A de Maubeuge produz comerciais leves elétricos para a própria Renault e as parceiras Nissan e Mercedes-Benz, como por exemplo o Kangoo E-Tech exportado para o Brasil. Já a de Ruitz, uma antiga fábrica de caixas de câmbio, virou um centro de produção de componentes e invólucros para baterias de carros elétricos.

A elas se juntam outros complexos nas redondezas, como o de Cléon, na Normandia (noroeste do país), que passou a fabricar motores elétricos, e o de Flins, em Yveline (mais ao centro do país), que virou um polo de recuperação, reparação e reciclagem de veículos elétricos usados. Lá, a Renault promove a troca de componentes como motores e baterias de veículos elétricos mais antigos, a conversão de automóveis a combustão em elétricos e até a reciclagem de baterias usadas.

Para atualizar essas cinco plantas, a marca do losango investiu quase 2,5 bilhões de euros, o equivalente a R$ 15 bilhões na conversão direta atual. Todas são pelo menos cinquentenárias. A de Douai, a mais nova de todas, foi inaugurada em 1974 e está completando exatamente 50 anos. A de Flins, a mais antiga, é de 1949 e já tem 75 primaveras. Atualmente, são quase 9 mil funcionários nos cinco espaços, sendo 5 mil no Electricity, 3,2 mil em Cléon e pouco menos de mil em Flins.

Autoesporte visitou a principal fábrica do Electricity, em Douai. A planta já produziu clássicos da marca como o hatchback 5, o sedã 19 e a minivan Scénic. Desde 2021, está dedicada apenas a veículos elétricos. Lá são feitos, atualmente, o Mégane e o Scénic E-Tech, construídos sobre a plataforma CMF-EV. Também está em processo de ramp-up (aumento gradual da escala de produção) o novo Renault 5 E-Tech e sua variante Alpine, o A290, que serão lançados no mercado europeu até o fim deste ano.

Em Douai também se realizam os processos de estamparia, solda, pintura e montagem das baterias. São 2,5 mil funcionários (metade de todo o Electricity) e, apenas ali, a Renault investiu 620 milhões de euros (mais de R$ 3,5 bilhões). O curioso é que, apesar de ser considerado uma gigafábrica, o complexo teve sua área reduzida quase pela metade durante o processo de reestruturação. Isso porque a Renault concentrou os processos produtivos em espaços menores. Assim, vendeu os terrenos contíguos que ficaram vazios e reduziu os custos de manutenção do complexo em 30%.

No andar térreo do prédio fica a linha de montagem. As áreas de estamparia, solda e pintura são praticamente todas automatizadas. Mal se vê uma alma viva nessas alas, pois até o transporte de componentes, como as chapas de aço, é feito por robôs transportadores que rodam por trilhos magnéticos espalhados pelo chão.

São tantos os trilhos e os robôs circulando entre as linhas que fica difícil andar pelo local sem dar de cara com um carrinho desses vindo em sua direção. Por sorte, os veículos têm sensores anti-impacto e param quando detectam um obstáculo à frente, incluindo um corpo humano. Não me contenho: coloco os pés e até pulo na frente de um dos trilhos para testar a capacidade de “frenagem autônoma emergencial” do carrinho. Recebo o olhar torto de repreensão de um dos pouquíssimos funcionários ali presentes.

É na montagem final dos veículos e na ala das baterias que se concentra boa parte dos trabalhadores. Nessas duas etapas, que demandam o manuseio de componentes pequenos e mais delicados, o trabalho manual ainda se mostra muito necessário em operações como o agrupamento dos módulos de bateria, fixação dos bancos e de peças do acabamento na cabine do veículo, ou mesmo ligação dos chicotes e ativação dos módulos elétricos.

No andar de cima fica a linha das baterias, que também conta com um número muito maior de trabalhadores. Ali, cada etapa do processo é dividida em três níveis de segurança: azul (sem manipulação de nenhum sistema elétrico), laranja (ligações simples, de baixa tensão, com o sistema elétrico desligado) e vermelho (contato com sistemas integrados de alta tensão).

Por razões de segurança, cada uma dessas etapas demanda um nível diferente de treinamento, o que significa que um empregado de nível azul jamais pode entrar em uma zona de segurança vermelha. A Renault afirma que a fábrica de Douai é do tipo 4.0, conectada à internet e com dados de tudo que acontece sendo compartilhados em tempo real via nuvem.

Com o Electricity mais o ecossistema adjacente, o objetivo da Renault é ter capacidade para produzir 400 mil veículos elétricos ao ano já em 2025, chegando a um pico de 620 mil até 2028. Tudo isso com uma redução total de 40% em custos logísticos, visto que mais de 75% de toda a cadeia produtiva, incluindo fornecedores terceirizados (como a gigafábrica de baterias da Verko em Dunquerque, também no norte francês), fica concentrada em uma região com distâncias menores que 300 km.

Com esse planejamento, a marca do losango acredita já ter conseguido não apenas alcançar, como superar o nível de competitividade das montadoras chinesas, pelo menos em termos de eficiência nos processos de produção de um carro elétrico.

“Em termos de produção, com este ecossistema tão próximo que temos aqui, somos mais competitivos do que eles [chineses], que têm um país de dimensões continentais e precisam lidar com distâncias muito mais longas”, afirma Pierre-Emmanuel Andrieux, diretor da fábrica de Douai.

O executivo admite, contudo, que essa competitividade, sozinha, não é suficiente para garantir preços mais baixos que os dos elétricos chineses. “Ter uma fábrica competitiva e preços mais competitivos são coisas diferentes. Várias questões podem impactar no valor final de um veículo, como os impostos e os incentivos”, pondera.

Pergunto se Andrieux não está querendo dizer, implicitamente, que os elétricos chineses só são mais baratos por causa dos subsídios dados pelo governo local. “É você que está dizendo isso, não eu”, responde, com um sorriso irônico, sem proferir mais nenhuma palavra a respeito.

Oficialmente, a União Europeia já acusou as fabricantes chinesas que operam na região de “se aproveitarem de subsídios governamentais”, aplicando a elas um tarifaço de até 48% sobre os veículos elétricos produzidos no gigante asiático que são vendidos nos países do bloco.

Independentemente das disputas políticas e econômicas, o ecossistema Renault Electricity aproveita uma estrutura desenvolvida no passado, mais de cinco décadas atrás, para tentar se antecipar ao futuro. Para isso, transformou suas fábricas antigas no norte da França, antes fadadas à obsolescência, em uma cadeia fabril inteligente para a produção eficiente de carros elétricos. Se vai ser o suficiente para sobreviver ao voraz e intenso processo transitório da eletromobilidade, agora só o tempo dirá.

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Fonte: direitonews

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