MAYARA PAIXÃO
GUARULHOS, SP – Quando invadiu a Ucrânia, em fevereiro, a Rússia acabou abrindo espaço para a vazão de críticas domésticas em parte adormecidas. Desde então, nasceram iniciativas de minorias étnicas que enxergam a guerra como outra maneira de explorar suas comunidades.
Em comum, os grupos afirmam que soldados de regiões mais pobres e de nacionalidades minoritárias são os mais enviados ao front e os que menos recebem apoio em caso de ferimento ou morte.
A Rússia é formada por 85 unidades federativas, 22 das quais são repúblicas criadas como regiões para representar áreas de nacionalidades não russas. O país raramente divulga o número de baixas na guerra, mas um levantamento do site Mediazona, banido pelo Kremlin, junto com a rede britânica BBC estima cifras desproporcionais de mortes de soldados desses locais.
Até o início de julho, ao menos 4.238 soldados russos teriam morrido. Destes, 225 são da República do Daguestão (sudoeste), 185 da República da Buriácia e 66 da República de Tuva, ambas no centro-sul. Somadas, as três repúblicas representam 3% da população, mas 11,3% das mortes. Organizações locais antiguerra falam em números ainda maiores.
São grupos como os Asians of Russia (Asiáticos da Rússia), criado neste ano, que diz ter como objetivo difundir a cultura de minorias no país e na diáspora, mas em especial o combate à guerra. A iniciativa oferece apoio legal a perseguidos por razões políticas e a militares convocados e que não desejam ir.
Ou a Fundação Buriácia Livre, criada pela jornalista Alexandra Garmajapova. A organização afirma que a maior parte dos homens do interior da Buriácia vê no serviço militar a única oportunidade para conseguir dinheiro e comprar uma casa em Ulan-Ude, sua capital.
A percepção é a mesma do analista Pavel Luzin, especialista em Forças Armadas russas. Ao jornal britânico The Guardian ele disse que os baixos escalões do Exército estão cheios de jovens dessas repúblicas que se alistam após o serviço obrigatório, em especial por razões financeiras. “É um bilhete de ouro para muitos sem perspectivas na vida.”
Mas há outro fator que impulsionou a criação do grupo: o preconceito do qual são alvos em outras regiões, como Moscou e São Petersburgo. “Acreditamos que a Rússia, ao declarar como objetivo a desnazificação da Ucrânia, se contradiz absolutamente, porque tem um nível muito alto de chauvinismo, racismo e nazismo”, disse Garmajapova à revista Republic, também censurada pelo Kremlin.
Esse cenário faz parte de um sistema que perpetua diferenças étnicas, afirma o professor de história da USP Angelo Segrillo. Na Rússia, uma pessoa herda a nacionalidade do pai ou da mãe, diferentemente do que se dá no Brasil e em outros países ocidentais, onde a definição está ligada ao local de nascimento.
“Isso cria uma grande riqueza cultural, mas também a possibilidade de tensões, porque todos querem autonomia cultural ou mesmo política”, diz o autor de “Os Russos”. Assim, uma pessoa que nasce na República de Tuva não tem necessariamente nacionalidade tuvana -apenas se o pai ou a mãe a tiverem.
É o caso do ministro da Defesa, Serguei Choigu. Ele, que nasceu em Chadan, em Tuva, filho de pai tuvano e mãe russa, mantém relação com quadros do governo na república, mas já afirmou ter sido criado sob a fé da Igreja Ortodoxa e não estar ligado ao budismo e ao xamanismo, religiões tradicionais da região.
Os últimos dados públicos, de mais de dez anos -e, portanto, defasados-, mostram que mais de 160 nacionalidades convivem no país. Cerca de 80% da população seria russa. Também há tártaros (3,9%), ucranianos (2%) e basquires (1,1%), por exemplo.
O Instituto para o Estudo da Guerra (ISW), think tank de Washington que divulga relatórios diários sobre o conflito na Ucrânia, afirmou em documento recente ter observado a prevalência de russos não étnicos em batalhões russos. “Isso traz à tona o risco de que o desejo aparente de Putin de que os não russos suportem o peso da guerra crie uma tensão doméstica nessas regiões.”