Apesar do forte engajamento da sociedade civil, a resposta imediata a situações catastróficas como as atuais enchentes no Rio Grande do Sul seria inviável sem a atuação das Forças Armadas. Mas, enquanto a maioria dos países embarca em uma corrida para aumentar orçamentos de Defesa e estoques de material bélico desde a invasão da Ucrânia em 2022, o Brasil caminha na contramão e já cortou 48% do orçamento dos militares nos últimos dez anos.
Mas por que os militares sempre são chamados para atuar em grandes cenários de desastres? Diferente de forças policiais, bombeiros e órgãos de defesa civil, os militares conseguem atuar de forma autônoma em locais onde estruturas de transporte, abrigo, alimentação e comunicações entram em colapso.
Ou seja, membros da população podem distribuir água engarrafada, comida e cobertores, mas não podem fazer resgates aéreos, desobstrução de estradas e recomposição do asfalto, transporte e instalação de grandes geradores elétricos ou purificadores de água em escala industrial, ou ainda deslocamento de grandes quantidades de insumos por avião ou navio.
Antes do Rio Grande do Sul, o exemplo mais recente de emprego das Forças Armadas foi a operação que levou comida emergencialmente para aldeias indígenas Yanomami, localizadas entre os estados de Roraima e Amazonas. A comida teve que ser lançada de paraquedas a partir de grandes aviões de carga (pela inacessibilidade da floresta), recuperada em solo e então redistribuída para cada aldeia. Nenhuma agência civil ou sociedade organizada teria capacidade logística para exercer a tarefa.
Quando as águas começaram a subir rapidamente no Rio Grande do Sul no fim de abril, as Forças Armadas foram mobilizadas para atuar nos resgates de pessoas ilhadas. Os recursos para comprar combustível e utilizar aeronaves, veículos e maquinário saíram da verba de adestramento e custeio do Ministério da Defesa. No ano passado, 6,2% do orçamento da pasta (cerca de R$ 7,5 bilhões) foram utilizados para custear ações e operações extraordinárias, que fogem à rotina de treinamento e manutenção das forças.
“O custeio vai aumentar e vai aumentar bastante neste ano. As Forças Armadas fazem poucas missões de treinamento em comparação com países desenvolvidos, e agora há um uso intensivo de aeronaves e helicópteros, que geralmente fazem poucos voos por ano e agora estão fazendo voos o dia inteiro. Então a verba de custeio deve subir bastante”, explica o doutorando em Políticas Públicas, Estratégia e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Henrique Alvarez, que também é mestre em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
O comandante militar do Sul, general Hertz Pires do Nascimento, explicou em entrevista à Gazeta do Povo de onde vem a verba. “Nós estamos empregando o recurso que está disponível para o nosso adestramento, o preparo da nossa tropa. Mas a atenção em termos de combustível, em termos de recursos, tudo o que eu coloco, tudo o que eu necessito tem chegado para aquisição”, disse.
De acordo com o comandante, as operações de resgate nem sempre são fáceis e equipamentos e veículos se desgastam ou acabam destruídos. Isso é um risco natural de qualquer operação de resgate. “Só em um evento de salvamento em um bairro de Canoas eu perdi cinco caminhões. Literalmente, a água levou, cobriu todo o caminhão, perdi todo o caminhão. Motores de popa, botes estragados, o desgaste das nossas viaturas, o maquinário de engenharia que vai ser empregado”, disse o general à Gazeta do Povo.
Alvarez explica que essas despesas podem ser custeadas a partir de crédito extraordinário liberado pelo Governo Federal, que é usado para repor as reservas do Ministério da Defesa. Mas, segundo analistas, essa ação emergencial de reposição de verbas não exime o governo de fazer investimentos nas Forças Armadas. Se aeronaves, embarcações e blindados forem sucateados ao longo dos anos, não haverá meios para serem mobilizados rapidamente quando as próximas catástrofes acontecerem.
Defesa foi alvo de cortes nos últimos dez anos
Há um ano, o comandante da Marinha, Marcos Sampaio Olsen, foi à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, na Câmara dos Deputados, e alertou que se novos investimentos não fossem feitos rapidamente, 40% dos navios da esquadra brasileira estariam sucateados em 2028. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva só reduziu o orçamento militar desde então. Mas essa não foi uma tendência adotada apenas pelo petista.
Nos últimos dez anos, o Ministério da Defesa teve uma redução de quase 48% no seu orçamento — cortes que deixam o país cada vez mais distante da meta de investir 2% do Produto Interno Bruto (PIB) no setor militar. Esse é o patamar que países da OTAN (aliança militar ocidental) adotaram para se preparar para possíveis conflitos contra países como Rússia, China e Irã – que também estão se armando em um ritmo ainda mais agressivo.
Ou seja, os sucessivos cortes na Defesa colocam o Brasil na direção oposta do mundo. Enquanto países europeus e sul-americanos se esforçam para atingir os 2% do PIB, o Brasil tem uma média de investimento no setor de cerca de 1,1% — quantia que foi equivalente a R$ 121 bilhões em 2023.
Em meados de abril de 2024, os comandantes das três Forças Armadas e o ministro da Defesa voltaram à Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (Creden), na Câmara dos Deputados, para contestar os novos cortes feitos à pasta. O orçamento, que já é considerado insuficiente, teve uma nova redução de R$ 280 milhões, anunciado pelo governo federal para que fosse possível atender às regras do novo arcabouço fiscal. Apesar de não ser um valor expressivo, o “enxugamento” reforça a insatisfação entre militares e analistas preocupados com um mundo mais suscetível a conflitos nas próximas décadas.
Deputados pregam cortes de verbas na Defesa e cobram eficiência em resgates
Além do governo de esquerda diminuir o investimento na Defesa, postura similar tem sido defendida até entre parlamentares da direita. O deputado federal Ricardo Salles (PL-SP) criticou o apelo dos militares por mais dinheiro na audiência na Câmara. “Eu não me alinho a essa fala de ‘precisamos de mais orçamento’. Negativo. Enquanto for esse nível de ineficiência e aversão a operações de efetividade, há outros que fazem muito mais barato e com mais eficiência”, disse. “Ter metralhadora, helicóptero para distribuir cesta básica, a Legião da Boa Vontade faz isso com muito mais eficiência, muito mais barato”, disse o parlamentar antes da crise no Rio Grande do Sul.
Já o deputado Luís Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) criticou não o envio de recursos, mas o emprego das Forças Armadas em ações sociais. “Como cidadão parlamentar, eu não quero ver as Forças Armadas sendo empregadas para ajudas sociais de qualquer espécie. Nós temos 100% do nosso orçamento federal alocados para políticas sociais e aqui tem o Ministério da Defesa falando que uma parcela expressiva das suas atividades é em atividades sociais. Eu quero ver o Ministério da Defesa empregando em defesa”, disse Bragança.
Já nesta semana o mesmo deputado criticou as Forças Armadas por supostamente não terem desempenhado melhor seu papel de resgate no Rio Grande do Sul. “Por mais que tenham agido e de fato terem salvado vidas, a percepção geral foi de baixa efetividade”, escreveu ele em sua coluna na Gazeta do Povo.
Uma das bandeiras de Bragança é que as Forças Armadas revejam seu orçamento e passem a gastar menos com a folha de pagamento dos militares e mais com a aquisição de novas tecnologias.
Defesa luta por investimentos e menos cortes
Enquanto outras nações têm diretrizes para destinar 2% do seu Produto Interno Bruto (PIB) para investimentos na Defesa, o percentual brasileiro é de cerca de 1,1%, valor considerado insuficiente, de acordo com o ministro José Múcio Monteiro Filho, para cumprir com despesas fixas, investimento em novos equipamentos e pagamentos de acordos de compra.
“Nós compramos [equipamentos] sem ter a certeza de que vamos pagar”, lamentou o ministro. “Nós não temos previsibilidade orçamentária, ficamos dependendo da responsabilidade de quem faz o Orçamento. Nós não temos uma bancada de deputados e nem de senadores porque a pasta não é para isso, dependemos apenas de quem faz o orçamento do governo para a pasta da Defesa”, declarou Múcio ao afirmar que a Defesa tem prioridades de Estado que ultrapassam a troca de governos.
De acordo com o Ministério da Defesa, dos R$ 121 bilhões destinados para a Defesa em 2023, R$ 103 bilhões foram para pagamento de pessoal e R$ 7,5 bilhões para custeio de ações e manutenção das organizações militares. Do orçamento, R$ 8 bilhões foram destinados a investimento militar, ou seja, 6,6%.
O especialista Henrique Alvarez explica que os cortes feitos na pasta no Brasil acabam afetando o avanço tecnológico e a atualização das Forças Armadas. “Há despesas que são obrigatórias, como os salários, por exemplo, que com o baixo orçamento, acabam sendo os maiores gastos da Defesa. Então, o corte vai ser em investimento e treinamento”, afirma.
Durante sua participação na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, Múcio pediu apoio da Comissão para a aprovação de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que prevê o aumento gradual do investimento de 2% do PIB do país para as Forças Armadas. A ideia é que esse aumento aconteça ano a ano até chegar ao patamar estipulado.
O pedido foi endossado pelos comandantes das Forças Armadas, o general Tomás Paiva, do Exército; o almirante Marcos Olsen, da Marinha; e o tenente-brigadeiro Marcelo Damasceno, da Aeronáutica, que ressaltaram a defasagem em equipamentos devido à redução do repasse ao Ministério da Defesa. Apesar do apelo, ainda não existem expectativas para mudança desse cenário.
Brasil é o sétimo país da América do Sul em investimento na Defesa
A defasagem em investimentos para a Defesa no Brasil não ocorre somente em relação aos países da Organização do Tratado Atlântico do Norte (OTAN) – organização que mais investe na área militar -, mas também em relação às nações sul-americanas. “Percebemos que o Brasil é um dos países da América do Sul que menos aplica recursos no setor”, disse o ministro da Defesa.
Atualmente, o Brasil ocupa a sétima posição na América do Sul no ranking de países que mais investem na Defesa – levando em consideração o PIB. Há mais de uma década, o Brasil era o país sul-americano que mais revertia recursos do PIB para o setor da Defesa. Hoje essa posição é ocupada pela Colômbia.
De acordo com relatório do Instituto Internacional para a Paz de Estocolmo (Sipri), 2,9% do PIB colombiano, cerca de US$ 10,7 bilhões, foram injetados em gastos militares no último ano. O PIB do país em 2023 chegou a US$ 363,8 bilhões.
Já o Brasil destinou pouco mais da metade do que a Colômbia para Defesa, cerca de US$ 22,9 bilhões. O PIB brasileiro em 2023, contudo, foi quase seis vezes maior do que o do vizinho sul-americano e atingiu o patamar de US$ 2,1 trilhões. O indicador deixou o Brasil entre as dez maiores economias do mundo. Após a Colômbia, a lista de países na América do Sul é composta por Equador, Uruguai, Chile e Bolívia.
Múcio destacou ainda que o investimento do Brasil no setor militar está mais de um ponto percentual abaixo da média global, que é de 2,3% do PIB revertido para a área. Atualmente, o gasto mundial com Defesa é US$ 2,4 bilhões por ano, também segundo o Sipri. Vale ressaltar que as análises do instituto são abrangentes e podem estar desatualizadas em relação às informações divulgadas pelos governo de cada país. O Sipri informa que as alterações percentuais são expressas em termos reais e a preços constantes de 2022. Ou seja, o foco da pesquisa está em fazer um ranking mundial com estatísticas comparáveis entre si e não em trazer os dados mais recentes de cada país.
“Se esses cortes [no orçamento da Defesa] forem permanentes, podem acabar causando problemas maiores, como o cancelamento de alguma compra ou algum tipo de fornecimento de armamento, atrasar alguma entrega e isso pode atrapalhar internamente. Interfere também na própria Indústria Nacional de Defesa, como é o caso da Avibras“, avalia Henrique Alvarez.
Enquanto Brasil enxuga recursos na Defesa, OTAN pede mais investimentos
A OTAN, aliança militar que possui 31 países membros na América do Norte e na Europa, cobra o investimento de 2% do PIB para ser destinado ao setor da Defesa como uma das “regras” para os membros da organização. A meta foi formalizada durante a cúpula da aliança realizada no País de Gales, em 2014. Porém, países como os Estados Unidos e o Reino Unido, que integram a aliança, têm um aporte maior para a área.
De acordo com informações do Instituto Internacional para a Paz de Estocolmo de 2023, os investimentos estadunidenses para o setor correspondem a 3,4% do PIB do país, valor equivalente a US$ 916 bilhões. Já o Reino Unido reverte 2,3% do seu PIB para a área da Defesa, quantia que chegou a US$ 74,9 bilhões no último ano. Recentemente, o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump cobrou que os países da OTAN invistam mais em despesas militares. A ideia é que dependam menos de Washington para se defender.
A cobrança ocorreu porque alguns países têm sido “inadimplentes” com seus compromissos militares. Considerada a maior potência militar da OTAN, Trump revelou que não utilizaria tropas ou equipamentos dos Estados Unidos para defender um parceiro da aliança que eventualmente fosse invadido pela Rússia.
De acordo com o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, houve um impulsionamento nos investimentos militares por parte dos países-membros da aliança militar em 2023. Segundo ele, o Canadá e alguns países europeus adicionaram mais de US$ 600 bilhões em seus investimentos em Defesa, um aumento real de 11% nos gastos com setor no ano. O aumento significativo pode ter sido influenciado pela guerra entre Rússia e Ucrânia, na Europa.
Lula não parece disposto a investir mais no setor
Apesar dos apelos já feitos por Múcio e pelos comandantes das Forças Armadas, o presidente Lula não parece disposto a aumentar o orçamento da Defesa. Em discursos recentes, o petista criticou os gastos dos países com equipamentos militares. Uma dessas ocasiões foi na Cúpula da Caricom, em Georgetown, na Guiana.
“Não é possível que o mundo gaste US$ 2,2 trilhões por ano com armas. Todos sabemos que guerras provocam destruição, sofrimento e morte, sobretudo de civis inocentes. Uma guerra na Ucrânia afeta todo o planeta, porque encarece o preço dos alimentos e dos fertilizantes”, disse.
Ainda antes disso, em agosto de 2023, o petista também criticou o gasto feito por outros países nessa área e afirmou que o Brasil não seguiria por esse mesmo caminho. “A diferença é que o Brasil não quer gastar em guerra. Queremos investir em programas para mudar a vida das pessoas”, afirmou Lula.
O especialista Henrique Alvarez afirma que os gastos militares podem até aumentar em 2024 por conta do pagamento de despesas extras que as Forças Armadas têm tido com a atuação no Rio Grande do Sul. Mas isso não significa que haverá mais investimentos no setor.
“Para esse tipo de operação é aberto crédito extraordinário. Acredito que por conta da suspensão das regras fiscais em relação à ajuda no Rio Grande do Sul, fica mais fácil esse tipo de ‘gasto’ para repor material que seja perdido nessas missões. Para a parte administrativa, salário, bonificações dos militares, combustível, manutenção dos meios que vão ser empregados… Tudo isso deve partir de crédito extraordinário, então não acho que não vai pesar para o orçamento da Defesa”, pontua o especialista ouvido pela Gazeta do Povo.
Alvarez detalha ainda que esses recursos do crédito extraordinário se somam ao orçamento de Defesa e por isso o valor pode encerrar o ano com uma quantia “inflacionada”.
“Nesse caso, dependendo dos custos, pode ser que o orçamento de Defesa aumente. Em 2023, foram R$ 268,5 milhões em créditos extraordinários, somando ajuda à terra Yanomami, Rio Grande do Sul e envio de ajuda à Faixa de Gaza. Sendo essa uma emergência ainda mais desafiadora para a logística e sem regra fiscal, pode vir um crédito muito grande, que cubra os cortes do início do ano”, explica Henrique Alvarez.
Fonte: gazetadopovo