Dia de Solidariedade ao Povo Palestino: como o Brasil tem se posicionado sobre a causa?


Todo dia 29 de novembro, como esta quarta-feira, parte dos complexos da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York, Genebra, Nairóbi e Viena são transformados em exposições que alertam sobre a situação da população palestina que se tornou refugiada dentro do próprio território. Mas, neste ano, a data ultrapassa ainda mais os salões da entidade e é lembrada mundo afora: no Brasil, mobilizações e protestos acontecem em todas as regiões, de Norte a Sul, do Centro-Oeste ao Sudeste, e Nordeste.
De um lado, a Cisjordânia, que tem uma população de mais de três milhões de palestinos e convive com pelo menos 300 assentamentos israelenses, criados de forma ilegal, com cerca de 750 mil colonos. Do outro, a Faixa de Gaza, onde pelo menos 80% de seus quase 2,3 milhões de habitantes vivem na pobreza em meio a um bloqueio de Israel que perdura há mais de 15 anos.
Tudo se intensificou ainda mais após o conflito entre Israel e o Hamas em Gaza que, apesar do cessar-fogo temporário desde o último fim de semana, já obrigou quase 1,7 milhão de pessoas a deixarem suas casas na região, lembrou nesta quarta-feira o secretário-geral da ONU, António Guterres. Na Cisjordânia ocupada, ainda há o risco de outro conflito “explodir” a qualquer momento. Enquanto isso, uma resolução aprovada ainda na primeira metade do século passado segue longe de ser cumprida.
Era 1947 — dois anos após a pior guerra que já atingiu a humanidade terminar — quando a recém-criada ONU aprovava, no dia 29 de novembro, a criação de dois novos Estados no Oriente Médio: um judeu e outro árabe. O Estado de Israel foi firmado, mas a Palestina nunca foi consolidada. E o pior: em 1977, quando a ONU criou o Dia de Solidariedade ao Povo Palestino, a região convivia com uma intensa ocupação militar israelense que já durava uma década. Mas qual é a posição histórica do Brasil frente a todas essas tensões no Oriente Médio?
A pesquisadora e colaboradora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) Karina Calandrin trouxe um panorama à Sputnik Brasil sobre a questão. Conforme afirma a especialista, o país sempre se posicionou pela efetivação de dois Estados para dois povos.
“É um reconhecimento ao direito de autodeterminação do povo palestino e, também, do povo judeu. Historicamente, essa sempre foi a posição e nunca houve um governo que tivesse negado a questão, mesmo com as diferenças ideológicas”, pontuou.
Mesmo assim, houve momentos históricos a partir da redemocratização do país, com o fim da ditadura militar na década de 1980, de divergências na linha adotada pelo Itamaraty. “Houve comentários mais duros das relações exteriores e, também, da Presidência da República sobre o conflito [na região], ora por conta de ações de Israel, ora por conta do Hamas [e outros grupos palestinos, como o Fatah], mas a posição de defesa de dois Estados sempre esteve firme na política de Estado brasileira”, afirmou.
© Ricardo Stuckert / Presidência da RepúblicaPresidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, durante encontro com o presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, em Nova York. Estados Unidos, 19 de setembro de 2023

Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, durante encontro com o presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, em Nova York. Estados Unidos, 19 de setembro de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 29.11.2023

Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, durante encontro com o presidente da Autoridade Nacional Palestina, Mahmoud Abbas, em Nova York. Estados Unidos, 19 de setembro de 2023

Lula visitou Israel e a Cisjordânia em 2010

Um dos episódios mais marcantes sobre o posicionamento diplomático do Brasil frente à questão aconteceu em 2010, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que terminava seu segundo mandato, visitou Israel e a Cisjordânia. De acordo com a doutora em relações internacionais Karina Calandrin, o petista esteve em locais que nenhum outro presidente brasileiro havia visitado no país judeu, como o túmulo em Tel Aviv do primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin, assassinado em 1995.
Já na Cisjordânia, Lula inaugurou a primeira Embaixada brasileira em Ramallah, e os palestinos também estabeleceram uma unidade diplomática em Brasília. “Foi uma visita diplomática muito correta, e esses movimentos importantes foram entendidos como uma regularização da política externa tradicional brasileira. Então, se Israel é reconhecido, por que não reconhecer a Palestina respeitando as fronteiras de 1967, que são reconhecidas internacionalmente para se falar na construção dos dois Estados?”, questionou.
Lula, na ocasião, ainda ofereceu ajuda do Brasil para as negociações de paz entre Israel e o Hamas, que foi eleito o grupo representante da população palestina à época, em pleito realizado em 2006.
“Isso não se consolidou, até porque o Brasil é visto como um ator distante da questão. Primeiro que não é uma superpotência como os Estados Unidos — porque poderia argumentar a mesma coisa deles —, mas o país é uma potência regional. Na época, até mais do que é hoje. Isso tem retornado agora, no primeiro ano de governo Lula. Porém, o Brasil é visto como um ator mais envolvido em questões da América Latina e do Sul Global”, explicou.

Aliado a isso, Calandrin acredita que tanto Israel como o próprio Hamas não enxergavam no Brasil um ator que pudesse oferecer as condições para fazer essa mediação, até pela pouca aproximação cultural com ambos. Segundo ela, cultura e religião são questões muito caras ao Oriente Médio.

Chanceler chegou a boicotar discurso

Um pequeno incidente diplomático chamou a atenção durante a visita de Lula em 2010: o boicote do então chanceler de Israel, Avigdor Lieberman, ao discurso do presidente brasileiro no Knesset, o Parlamento do país judeu. O motivo foi a recusa do chefe de Estado do Brasil em passar pelo túmulo de Theodor Herzl, considerado o fundador do sionismo político que culminou com a fundação de Israel. Conforme a especialista, a estrutura fica no alto de uma colina e a recusa do petista foi justamente um aceno aos grupos que o apoiavam no Brasil.

“Para muitos grupos de esquerda, o sionismo é um movimento racista e colonialista, e não um movimento nacionalista como qualquer outro”, pondera Calandrin, que ressaltou que o episódio é só uma síntese do que já acontece no Brasil: a grande disputa ideológica sobre o tema Israel-Palestina. “Para não exacerbar mais os ânimos, Lula decidiu não visitar o túmulo de Herzl, e Lieberman [político da direita tradicional de Israel] interpretou isso como uma desfeita diplomática. Como resposta, ele não assistiu ao discurso no Knesset.”

Mudança da Embaixada de Tel Aviv para Jerusalém

Uma das cidades mais emblemáticas para as religiões atuais, Jerusalém é considerada sagrada tanto para judeus quanto muçulmanos. Como demonstração de apoio ao Estado israelense, em 2018, o então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, decidiu mudar a Embaixada norte-americana de Tel Aviv para a cidade, em meio a fortes críticas. O gesto simbólico ainda mudou o não reconhecimento histórico de Jerusalém como capital de Israel por Washington.
No Brasil, o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tentou seguir o mesmo movimento dos EUA. “O posicionamento se enquadrou dentro de um contexto de vários países da direita radical global sobre essa mudança. Vale lembrar que Donald Trump era uma grande aliado de Benjamin Netanyahu [que também era premiê israelense na época] e, também, de Bolsonaro. Você tem ali a triangulação de uma aliança estratégica”, disse a especialista.
A medida foi um aceno à bancada evangélica do Brasil, uma das principais apoiadoras do governo Bolsonaro e que também pressionava pela mudança, mas não se concretizou.
“O Brasil é um grande exportador de carne halal [produzida sob as normas do Alcorão sagrado como garantia do bem-estar animal, do nascimento ao abate] para países muçulmanos e árabes. Essa troca da Embaixada de Tel Aviv para Jerusalém, reconhecendo Jerusalém como capital de Israel, poderia impactar as exportações brasileiras. Inclusive, na época, os setores do agro acabaram pressionando o governo para a não mudança da Embaixada por essas razões”, completou.
No primeiro ano do novo mandato de Lula, a questão Israel-Palestina volta ao foco dos debates internacionais por conta da guerra, iniciada após os ataques-surpresa do Hamas contra o país, quando 1,2 mil pessoas morreram. A pesquisadora da USP avalia que o atual governo tem seguido a linha histórica da política externa brasileira, apesar das declarações do presidente mais inclinadas à questão palestina, em razão do alto número de mortos na Faixa de Gaza e das suspeitas de crimes de guerra cometidos por Israel.

Fonte: sputniknewsbrasil

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