Desde que chegaram ao estado, refugiados nunca receberam assistência do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena
Arte Secom/PGR
Em ação ajuizada na última terça-feira (6), o Ministério Público Federal (MPF) pediu que a Justiça Federal determine à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) e ao Distrito Especial de Saúde Indígena Potiguara (Dsei) que iniciem, em 48 horas, atendimento de saúde às famílias indígenas venezuelanas da etnia Warao refugiadas na Paraíba, notadamente nas cidades de João Pessoa e Campina Grande. O atendimento deve ser realizado por integrantes das Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) e dos Núcleos de Atendimento à Saúde Indígena (Nasi) que já são contratados pelo Dsei Potiguara.
O MPF também pede na Justiça que a União contrate, em 60 dias, equipe multidisciplinar de saúde indígena para atender aos refugiados Warao, através de aditivo ao Convênio nº 882491/2019, que o Ministério da Saúde/Sesai firmou com o Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Filgueira (Imip), o qual tem sido aditivado sucessivamente. O órgão ministerial ainda pede fixação de multa diária à União, no valor de R$ 50 mil, em caso de descumprimento da decisão judicial.
Desde que chegaram à Paraíba, entre novembro de 2019 e fevereiro de 2020, os refugiados Warao nunca tiveram prestação de assistência em saúde por parte do Dsei Potiguara, que é unidade gestora descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) do Ministério da Saúde. Durante todo esse período, as famílias abrigadas em João Pessoa e Campina Grande receberam assistência em saúde básica apenas da rede de atenção municipal. Em reunião com o MPF, em fevereiro de 2020, a Secretaria de Saúde de João Pessoa já ressaltava a necessidade de uma atuação conjunta para melhorar o estado de saúde dos indígenas, mencionando que corriam risco de morte. Em resposta ao MPF, a respeito do atendimento aos indígenas venezuelanos, o Dsei Potiguara alegou limitações legais e reduzida estrutura de pessoal, material e física para prestar suporte em atendimento específico aos Warao.
Óbitos – Os primeiros óbitos no grupo de cerca de 300 indígenas Warao refugiados na capital começaram no último trimestre de 2020 e, desde então já ocorreram, pelo menos, dez mortes, sendo sete delas de crianças. Foram mortes causadas por doenças similares, como pneumonia, tuberculose e sepse (infecção generalizada). A ação ajuizada traz os relatos dramáticos da série de mortes entre os Warao, que começaram em outubro de 2020 com o falecimento de um bebê indígena durante uma cesárea da mãe diagnosticada com infecção grave.
Ainda em outubro de 2020, houve a morte de uma jovem de 16 anos por tuberculose. Em dezembro de 2020, a mãe da jovem morta, uma indígena de 53 anos, também faleceu com tuberculose sem ter obtido leito hospitalar. Em março de 2021, faleceu no Ceará, vítima de sepse, uma menina Warao de apenas 10 meses de vida, poucos dias depois de deixar um abrigo em João Pessoa. Em abril de 2021, faleceram dois bebês gêmeos que nasceram prematuros, em fevereiro do mesmo ano, e foram diagnosticados com sepse. Em maio de 2021, uma jovem indígena grávida de oito meses faleceu cinco dias após uma cesárea de emergência. Em julho de 2021, uma bebê faleceu após ter tido febre durante uma madrugada. Em março de 2022, outra bebê Warao faleceu diagnosticada com pneumonia, sepse e insuficiência renal.
Ao demonstrar a urgência do pedido liminar, o MPF alerta sobre o perigo de mais mortes entre os indígenas refugiados se houver demora na contratação de equipe multidisciplinar de saúde indígena pelo Dsei Potiguara para atender aos Warao. “A demora condenará esse povo, que já se encontra em considerável vulnerabilidade social, a mais adoecimentos e mais mortes, até a concessão da tutela definitiva”, argumenta o MPF sobre o risco de desaparecimento do grupo Warao abrigado na Paraíba.
O procurador da República José Godoy Bezerra de Souza considera que o Estado brasileiro precisa urgentemente atentar para as condições de saúde dos indígenas Warao que chegaram refugiados ao país. Ele explicou a dimensão do alto número de óbitos ocorridos dentro do grupo de 300 indígenas em João Pessoa: “A quantidade de mortes de criança por indivíduos é extremamente maior do que ocorre na média de mortes do povo brasileiro. Se essas condições se perpetuarem, poderemos ter o extermínio desse grupo de refugiados” afirmou. O procurador também mencionou que as condições de vida insalubre em nossas cidades aumentam a vulnerabilidade da saúde dos Warao. “Isso é algo preocupante e está sendo observado por autoridades nacionais e internacionais”, salientou.
Mortes ignoradas – Na petição, o Ministério Público aponta a evidência mais nítida da ineficácia da prestação de saúde fornecida aos indígenas refugiados: “o elevado número de mortes, por doenças que são facilmente contornáveis, se houver a assistência em saúde em tempo hábil”. Para o órgão, é latente a desproteção a essa etnia pelo poder público, “principalmente, pelos próprios órgãos de proteção indígenas, que vêm ignorando esse número de mortes e deixando cada vez mais vulnerável essa população que já possui um evidente histórico de muita dor e sofrimento, desde a saída da Venezuela”, frisa a petição.
Para o MPF, resta evidente que a incidência de doenças respiratórias, principalmente nas crianças indígenas refugiadas, é muito recorrente, “o que os colocou sob um risco ainda maior em meio à pandemia da covid-19, somado ao contexto de deslocamento em que eles vivem, bem como ao modo de vida coletivo” relata o órgão. Há uma média de 50 pessoas coabitando em cada abrigo Warao, na capital paraibana.
Como destaca a ação ajuizada, a Constituição Federal brasileira prevê o tratamento isonômico entre brasileiros e estrangeiros residentes no país. Portanto, como refugiados, os Warao devem ser recebidos no Brasil “na sua qualidade de povo indígena, sendo titulares dos mesmos direitos dos indígenas brasileiros”. Assim, conforme o artigo 5º da Constituição Federal, os Warao “possuem a garantia constitucional reconhecida de ter acesso a um sistema de saúde diferenciado, que respeite suas particularidades culturais e lhes assegure a integridade e, por fim, a vida”, defende o MPF.
Obstáculos no atendimento – A limitação da assistência em saúde aos indígenas refugiados feita pela rede de atenção básica dos municípios decorre da ausência de formação das equipes do SUS em geral, que não passam pelo treinamento diferenciado que as equipes do subsistema de saúde indígena recebem. Outra limitação decorre do obstáculo linguístico, frequentemente mencionado pelas equipes de saúde do município de João Pessoa, no atendimento aos indígenas – que se comunicam na língua Warao e apenas alguns conseguem dialogar em espanhol, pouquíssimos em português. A situação é agravada pelo fato de não existir muitos agentes de assistência básica que falam espanhol, aptos para lidar com os refugiados. “Se torna latente a necessidade de construção de vínculos entre as equipes de saúde e os grupos indígenas, para que eles ouçam os que buscam ajudá-los”, expõe o MPF.
Além desses entraves, ainda existem particularidades culturais dos indígenas, que entendem, por exemplo, que a cura das doenças deve vir dos curandeiros Warao. “Os indígenas Warao possuem um sistema xamânico próprio, em que os curandeiros detêm grande importância para o grupo. Nas ocasiões de adoecimentos e nascimentos, eles são os primeiros a serem consultados e, com muita frequência, as equipes de saúde ocidentais somente têm acesso aos pacientes depois de sua autorização”, relata o MPF.
Empurrados para a extinção – O Ministério Público relata na ação que a fragilidade na saúde dos Warao ao chegarem à Paraíba se deu, em grande parte, pelo deslocamento, quase sempre em situações precárias e sem as devidas condições de higiene e alimentação. Para garantir a sobrevivência, ainda na Venezuela, os Warao desenvolveram a prática de pedir doações nas ruas das cidades para onde migraram, por remoção forçada, em decorrência dos vários impactos negativos causados por empreendimentos do setor petroleiro na fauna e na flora da região em que originalmente habitavam.
Outra característica dos Warao é a presença recorrente das crianças indígenas em todas as atividades desenvolvidas pelos adultos, nelas incluídas as atividades praticadas na rua, como a mendicância. Esse aspecto da cultura Warao foi alvo frequente de denúncias da sociedade civil e de averiguações do conselho tutelar em João Pessoa, cidade onde os indígenas venezuelanos aportaram fugindo da crise humanitária em seu país.
Sem endereço fixo – Os deslocamentos dos grupos Warao também influenciam no atendimento à saúde, observa o MPF na ação, porque a assistência em saúde básica prestada pela rede municipal se organiza pelo princípio da territorialidade, onde cada equipe de saúde atende numa região preestabelecida. Desse modo, por exemplo, a população residente em determinado bairro só pode ser atendida pela rede do distrito sanitário daquele bairro. Em se tratando dos indígenas, argumenta o Ministério Público, “a assistência em saúde com essa forma de organização resta essencialmente prejudicada, uma vez que a grande perambulação do grupo nos entornos da cidade, sem, muitas vezes, haver uma residência fixa, dificulta que um Distrito Sanitário – composto por uma rede de USFs – lhes preste atendimento adequado e contínuo, fazendo-se necessário o atendimento por meio da rede federal dos DSEIs”, reitera o órgão.
Dsei – Criado pela Lei nº 9.836/99, o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena atua por meio de unidades gestoras descentralizadas, que são os Distritos Especiais de Saúde Indígena (Dseis). Cada Dsei dispõe de uma rede de serviços de saúde em seu território, com um posto de saúde em cada aldeia indígena. Cada conjunto de aldeias está sob a responsabilidade de uma unidade básica, onde ficam as equipes multiprofissionais de saúde indígena que fazem visitas periódicas às aldeias.
O Dsei possui competência para atuar na execução dos serviços de atenção primária, com cobertura para os povos indígenas em todo o Brasil. Na Paraíba, o Dsei Potiguara tem sede em João Pessoa e atende aos indígenas Potiguara do litoral norte do estado (Rio Tinto, Baía da Traição e Marcação), aos Potiguara do Rio Grande do Norte e aos Tabajara no litoral sul (Conde).
ACP nº 0807354-36.2022.4.05.8200 distribuída para a 2ª Vara Federal
Confira AQUI a íntegra da ação ajuizada
Assessoria de Comunicação
Ministério Público Federal na Paraíba
Telefone fixo: (83) 3044-6258
WhatsApp: (83) 9.9132-6751 (exclusivo para atendimento a jornalistas – das 10h às 17h)
Telefone para atendimento ao cidadão em geral: (83) 9.9108-0933 (das 9h às 14h)
Twitter: @MPF_PB
Youtube: MPFPB