Novela que estreia nesta segunda-feira, dia 22, na Globo, “Mar do Sertão” põe em cena um número recorde de atores nordestinos para um folhetim de TV.
Entre rostos já consagrados para atrair bilheteria, como o pernambucano Renato Góes, e faces absolutamente desconhecidas do grande público, o que inclui um grupo de repentistas, o elenco do folhetim das seis conta com 19 nomes. Isso é praticamente metade de quem participa do novo enredo assinado por Mario Teixeira, com direção artística de Allan Fiterman.
Normalmente representada por atores do eixo Rio-São Paulo, novelas ambientadas no Nordeste quase sempre tropeçam na fonética ao unificar o sotaque de diferentes regiões.
O expediente de Iris Gomes, professora de prosódia que treina sotaques e modos regionais em dez entre dez produções feitas fora do Rio de Janeiro, também vale para “Mar do Sertão”. Mas só para abrir os ouvidos e destravar a língua de outros atores, que no set ainda são beneficiados pela consultoria presente de colegas da Paraíba, do Ceará, da Bahia, do Rio Grande do Norte e de Pernambuco.
Pesa a favor da obra o fato de a história se passar em uma cidade fictícia, sem compromisso fiel a lugar nenhum. Mas a protagonista, Candoca, vivida pela quase estreante Isadora Cruz, puxa o acento do resto dos colegas para sua terra, a Paraíba, porém “com espaço para alguma fluidez”, assegura o diretor.
“Esse problema da prosódia não vai ter, porque Canta Pedra é uma cidade inventada, é a minha Macondo, onde tudo pode acontecer”, fala Teixeira, o autor, em entrevista por videochamada, ao lado de Fiterman. “A cidade está cravada num lugar totalmente fictício, onde tem cânion e caatinga, é uma mistura das tantas paisagens brasileiras.”
O autor conta que o diretor “bateu muita perna” para formatar a cidade que estará em cena, com imagens de Alagoas e Pernambuco, onde fica o vale do Catimbau, “que no audiovisual nunca foi filmado”, assegura Fiterman.
Embora a Globo tenha um extenso catálogo de profissionais cadastrados, o diretor conta que boa parte dos atores a serem apresentados ao público de TV pela primeira vez em “Mar do Sertão” veio de uma boa pesquisa, com apoio da produtora de elenco Márcia Andrade.
A aposta nessa escalação passa por um reequilíbrio de custos, já que foi preciso gastar mais com passagens aéreas e hospedagem para trazer de cidades do Nordeste intérpretes de personagens que normalmente são encontrados no Rio de Janeiro, onde a novela é praticamente toda gravada ao longo de nove meses.
Para contemplar essa escolha, o diretor teve de abrir mão de outros gastos, cortando aqui e ali, de cenografia e arte a outros segmentos.
“É um grande desafio trazer essa novela do sertão para o Rio de Janeiro. O que eu chamo de embrulho para presente é a fotografia, o cenário, mas as pessoas estão assistindo à história, e a minha preocupação maior é apostar em quem está contando essa história: os atores”, diz Fiterman.
Como Canta Pedra é um microcosmo de Brasil, algo que remete a novelas de Dias Gomes e Aguinaldo Silva, o diretor confia na força dos arquétipos para contar esse enredo, que recoloca na tela as entranhas do coronelismo.
O time nordestino é representado por Isadora Cruz, ao lado dos pernambucanos Renato Góes e Clarissa Pinheiro, dos baianos Érico Brás e Cyria Coentro, dos paraibanos Thardelly Lima e Suzy Lopes, com quem Fiterman havia trabalhado na novela “Quanto Mais Vida, Melhor!”, e do cearense Lucas Galdino, “um achado”, diz o diretor.
O mote central está no trio formado por Candoca, Zé Paulino (Sergio Guizé) e Tertulinho (Góes). Os dois primeiros vivem um romance visceral, até que ele sofre um acidente e é dado como morto. Quando voltar à cidade, dez anos depois, a moça estará casada com o terceiro, filho do coronel Tertúlio (José de Abreu).
A musicalidade nordestina virou um ponto alto no set, a ponto de todo mundo querer engatar a prosódia do sertão. Enrique Diaz, por exemplo, embora nascido em Lima, no Peru, vive talvez o mais característico dos personagens nordestinos, Timbó, que remete a Sancho Pança e João Grilo.
Welder Rodrigues, que fará novela pela primeira vez, é de Brasília, mas trouxe dicas autorais ao seu papel, assim como Érico Brás, intérprete de um sujeito receoso em assumir sua orientação sexual, como ainda cabe a muita gente oprimida pelo conservadorismo das pequenas cidades comandadas por oligarquias.
Para remexer no coronelismo, Teixeira diz que irá contemplar, aliás, o lado dos oprimidos e dos opressores, que nunca se enxergam nesse papel e normalmente se colocam como vítimas de quem ousa ocupar o espaço que eles acham que lhes pertencem por herança.
“No caso do coronel, esse título é completamente anacrônico, não existem coronéis no Nordeste há quase um século, senão mais, essa era uma patente da guarda nacional, que era conferida e passava de pai para filho”, lembra Teixeira.
“Tem um livro de que eu gosto muito, ‘Cartas do Barão’, que mostra as cartas trocadas entre um intendente de Canudos e o barão, dono das terras onde os jagunços tomaram posse, e ali há a visão do oprimido e do barão, que não se sentia um opressor. Ele se sentia um sujeito aviltado, porque tinham invadido e ocupado as terras dele.”
O autor conta ainda que José de Abreu sugeriu inserir frases clássicas de “Dom Quixote” em suas falas, e foi atendido. Débora Bloch, que vive sua mulher na história, afirma estar feliz em voltar para a comédia, após tantos papéis dramáticos.
“Eu nunca fiz uma novela em que os atores estivessem tão envolvidos com a criação dos seus personagens”, conta Teixeira.
“Os atores criaram um idioma próprio para a novela, usando expressões de todos os cantos do Brasil, inclusive essas expressões muito usadas em São Paulo, porque a gente não pode esquecer que a maior capital do Nordeste no Brasil é São Paulo”, continua ele.
Já o diretor é um entusiasta da cultura nordestina e, segundo o autor, um “exímio dançarino de forró”, ritmo que terá vez na história por meio do bar do Janjão.
“Hoje não cabe mais não ter diversidade em qualquer trabalho”, conclui Fiterman. “É preciso naturalizar a inclusão das pessoas. Quanto mais atores aparecerem fora do eixo Rio-São Paulo, independentemente de onde eles sejam, quanto mais atores trans tivermos no nosso meio, mais isso vai se tornar natural, mais vamos conhecer atores e possibilidades diversas.”
Teixeira concorda, mas avisa que nunca descreve em uma sinopse se o personagem tem cor ou raça. “Para mim, ator faz qualquer papel, não importa quem ele é de fato. E esse elenco inteiro foi escolhido por causa dos talentos, não pensando em divisão de cotas. Nenhum foi escolhido por paternalismo ou porque somos legais, grande parte deles fez teste.”