No mês passado, a nova ministra do Esporte gerou grande polêmica ao declarar que os esportes eletrônicos deveriam ser considerados entretenimento, com diversos grupos e organizações criticando a fala e apontando “preconceito” por parte da ex-jogadora de vôlei.
Até mesmo o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, entrou na discussão e criou uma coordenadoria com a promessa de transformar a cidade na capital mundial dos esportes eletrônicos.
Ao Jabuticaba Sem Caroço, em entrevista às jornalistas Bárbara Pereira e Francini Augusto, Anderson Gurgel, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisador na área de simbolismos do esporte, e Ary Rocco Júnior, professor e pesquisador da Escola de Educação Física e Esporte (EEFE) da Universidade de São Paulo (USP), explicaram por que os esportes eletrônicos serão considerados uma nova modalidade esportiva.
Afinal, o que é esporte?
A polêmica sobre o que é esporte, avalia Anderson Gurgel, parte da premissa equivocada de que o esforço corporal é uma definição de esporte. Entretanto, diz ele, “esforço corporal não se limita à ideia de levantar peso, por exemplo. Em um jogo de tênis que dura quatro, cinco horas, o que define é capacidade mental”.
“O Ayrton Senna, na Fórmula 1, provou isso várias vezes. O ponto central é: por que o esforço intelectual não é esporte? O nosso corpo é integrado, e muitos esportes estão ligados à capacidade mental de cada um”, disse o professor da Mackenzie.
Anderson Gurgel explica que esporte “é um tipo de comportamento cultural na sociedade” que precisa envolver competição, “mesmo que seja entre [o competidor e] a sua própria capacidade, como no surfe ou na corrida. […] O que se entende como esporte é diferente em cada lugar do mundo”.
Questionado sobre a possibilidade de esforço intelectual ser chamado de esporte, ele defende que “se você competir contra a sua capacidade intelectual, então sim”.
Preconceito e luta por reconhecimento
Enquanto busca seu espaço como modalidade esportiva, o mercado de games está em crescimento no Brasil e no mundo. Segundo uma pesquisa da empresa PwC Brasil, o mercado brasileiro dobrará em menos de cinco anos.
A estimativa é que a receita total de videogames e esportes eletrônicos no país chegue a US$ 2,8 bilhões (cerca de R$ 13 bilhões) em 2026. Em 2021, o Brasil superou o México como o maior mercado da América Latina e, em 2026, representará 47,4% da receita total na região.
Embora movimente grandes quantias, a ideia de que o esforço intelectual é um esporte ainda não convenceu a ministra Ana Moser.
Hoje estive em reunião com uma equipe do Ministério do Esporte e do Ministério da Educação discutindo parcerias entre as duas pastas. Agradeço ao ministro Camilo Santana pelo olhar atencioso e pela preocupação demonstrada à prática esportiva. pic.twitter.com/BhFz1UEhqs
— Ana Moser (@anabmoser) February 9, 2023
Ary Rocco Júnior aponta que isso ocorre porque “ela trabalha com um conceito clássico [sobre o que é esporte], que, até a virada dos anos 2000, era globalmente aceito, que é a prática de um exercício organizado por regras e competições internacionais. Esse era um conceito inquestionável”.
Entretanto, diz ele, “com a evolução da tecnologia, a prática do esporte também evoluiu. Os e-sports serão incluídos nos sistemas de competição internacional, porque movimentam dinheiro e, principalmente, representam o interesse de muitos na renovação do esporte olímpico”.
Segundo previsão de Ary Rocco Júnior, “os e-sports serão incluídos nos sistemas esportivos internacionais, como o Comitê Olímpico Internacional [COI] e outras federações”.
Uma fala infeliz?
Em entrevista em janeiro ao portal UOL, Ana Moser afirmou que os esportes eletrônicos não são considerados uma modalidade esportiva e que os campeonatos são parte de uma “indústria de entretenimento”.
Para a ex-atleta de vôlei, os treinos de preparação dos jogadores se assemelham aos de um artista para um show, e usou a cantora Ivete Sangalo como exemplo.
© Folhapress / Marcelo FonsecaA cantora Ivete Sangalo durante apresentação no Rock in Rio, no Rio de Janeiro (RJ), em 11 de setembro de 2022
A cantora Ivete Sangalo durante apresentação no Rock in Rio, no Rio de Janeiro (RJ), em 11 de setembro de 2022
Para ambos os especialistas consultados pelo podcast Jabuticaba Sem Caroço, a fala da ministra foi infeliz. Segundo eles, ela tentou pautar o debate sobre o assunto logo no seu primeiro mês e deixar claro quais seriam as prioridades do ministério no âmbito de suas políticas públicas.
Como disse Ary Rocco Júnior, “o esporte serve para educar as crianças, é uma ferramenta de política pública voltada para a saúde da população. E a ministra deixou claro em qual esporte ela quer investir pelos ganhos públicos”.
Isso não quer dizer, entretanto, como apontou o professor da USP, “que os e-sports não tenham benefícios para a saúde. Eles podem melhorar a capacidade de raciocínio de um grupo de crianças, como o xadrez”.
Além disso, completou Anderson Gurgel, é importante observar que os e-sports também “ensinam valores para a formação de uma sociedade, como convivência, respeito às regras, aceitar derrotas. Se a prática de jogos eletrônicos tem esse papel, então é um caminho”.
Até nove horas de treino
Para conseguir ser um atleta de e-sports de alto nível, a preparação é tão importante quanto as habilidades. A rotina toma de 8 a 12 horas diárias de prática de jogos e mais algumas horas de estudo, discussões de estratégias e análise das partidas dos adversários.
Conforme apontou Anderson Gurgel, ainda que sejam práticas esportivas ligadas ao intelecto, a preparação é fundamental. “Os atletas de e-sports precisam ter o corpo preparado para não ter uma fadiga, uma distensão, tendinite ou dor na coluna”, comentou.
Em seguida, ele acrescentou que, “há um século, as pessoas achavam que mulheres não seriam capazes de correr uma maratona e as primeiras Olimpíadas tinham carros de guerra. A verdade é que esse mundo dos esportes é muito conservador, mas sempre está mudando”.
O COI inclusive se antecipou nos esportes eletrônicos em uma entrevista no ano passado ao jornal Folha de S.Paulo. O diretor de Relações com os Comitês Olímpicos Nacionais e da Solidariedade Olímpica, James Macleod, comentou na ocasião que “a ideia é abraçar os games que simulam jogos com atividade física”.
“Uma coisa que o COI reconhece é que a indústria de games evolui constantemente. Olhamos para esses jogos que estão ligados a esportes e onde há atividade física”, disse ele, acrescentando que há interesse em “encorajar que as pessoas pratiquem e-sports em vez de jogos como League of Legends [LoL]”.
Fonte: sputniknewsbrasil